Opinião

Jacutinga e o arco e flecha guarani

Em fins de 2016, o indigenista Jacutinga, na companhia do amigo Cilço Paula Dias, rumou de Cuiabá para a Terra Indígena Pimentel Barbosa, morada do povo Xavante, no município de Canarana. De lá continuou a viagem até ao Museu do Índio, Rio de Janeiro, sua cidade natal. A missão foi a de transportar uma coleção etnográfica daquela etnia para ser integrada ao acervo museal. No final da tarde, depois de ter deixado Canarana, resolveu pernoitar em Cocalinho, ainda em terras mato-grossenses, na divisa com Goiás. Na direção de placas indicativas, encontrou o Hotel Pousada Araras.

Ao entrar no estabelecimento, avistou um arco e uma flecha fixados à parede e, logo depois da reserva dos apartamentos para aquela noite, Jacutinga perguntou à recepcionista a origem daquelas peças. – De onde são o arco e a flecha? A recepcionista não soube responder, mas informou que quem adquiriu as peças foi o proprietário do hotel, amigo dos indígenas. Jacutinga, insatisfeito com a resposta da moça, pediu para falar com o proprietário na manhã seguinte, antes de prosseguir a viagem.

Cedo, o proprietário já estava no refeitório, à espera de Jacutinga. Conversa vai, conversa vem, o arco e a flecha foram confeccionados por indígenas da etnia Guarani que ali se estabeleceram no início do século XX. O grupo de indígenas, à mercê da sorte, aguardava há décadas, uma resolução à situação de abandono, depois de ser violentamente expulso de sua aldeia por não indígenas.

Aquela manhã marcou a vida de muitas pessoas. Jacutinga orientou ao proprietário do Hotel Pousada Araras para auxiliar aos indígenas a procurarem o Ministério Público Federal em Barra do Garças para relatarem sua violenta história – expulsão, dispersão e mortes por grileiros e fazendeiros. De volta a Cuiabá, a ave reforçou os pedidos dos indígenas Guarani junto à Funai e relatou o ocorrido em Cocalinho ao amigo Sebastião Carlos Moreira, do Centro Indigenista Missionário, conhecido por Tião do Cimi que, mais tarde, foi até Cocalinho reunir-se com as famílias Guarani sobreviventes, expulsas da aldeia Jaguari por grileiros e fazendeiros.

O grupo de indígenas Guarani, por pouco não foi exterminado. Viu suas aldeias invadidas, suas casas e roças destruídas. O correntão preso a dois tratores a aniquilar aldeias, a desmatar a vegetação, a plantação, o cemitério, conforme relatos dos indígenas Urbano Pereira da Silva, líder Guarani, e Rosalina Carneiro da Silva, sua esposa. Tião do Cimi promoveu o estudo Território e luta do povo Guarani: aldeia Jaguari, Cocalinho-MT*, realizado sob a coordenação de Antonio João Castrillon Fernández, João Ivo Phul e Solange Ikeda Castrillon, integrante do Projeto Conflitos Sociais e Desenvolvimento Sustentável no Brasil Central (2019), sintetizado na cronologia a seguir:

 

1912

Saída do Paraguai. André com os pais passa por Cuiabá vai a Jatai, Jussara e Cocalinho

1940

Massacre de Guarani na aldeia na década de 1940

1950

Urbano nasceu na cidade de Jussara, retornou para aldeia Jaguari com 15 dias de vida. Cresceu o número de pessoas na Aldeia Jaguari

1970

Nasce Rosalina Carneiro da Silva na Aldeia Mamore, foi registrada em1971. Eram 10 famílias

1978

Chegada dos primeiros migrantes e início dos conflitos. Várias famílias ameaçadas e com medo abandonam a Aldeia Água Preta e Molha Mala. Forte conflito com fazendeiro e pistoleiro, presença da polícia civil e militar. A Aldeia Água Preta desapareceu com a retirada dos Guaranis

1983

Urbano e Rosalina casam e permanecem na Aldeia Molha Mala, onde nasceram os quatro filhos

1986

Conflito com o fazendeiro, pistoleiro e polícia na Aldeia Morere. Carregaram os móveis, panelas e pertences no caminhão do fazendeiro, que os levaram à periferia da cidade de Cocalinho e atearam fogo nas seis casas da Aldeia, ação de Ailton de Paulo (gato) e pistoleiro

1998

O fazendeiro queimou a casa do Urbano e depois construiu outra

2003

Primeiro reconhecimento do grupo Guarani pela Funai, com encaminhamento de documentação

2006-2008

Recebeu apoio da Funai com sementes e insumos para o plano das roças

2009

Fevereiro o filho Anderson foi preso por crime de porte ilegal de arma, permaneceu 23 dias na cadeia de Água Boa, saiu com a ajuda do advogado da FUNAI. Em abril o fazendeiro mais dois policiais e quatro pistoleiros carregaram à força dos bens da família de Urbano, expulsando da terra e despejou os pertences em uma casa da cidade.

2018

Luta pelos diretos e para o retorno à Aldeia Jaguari. Mandamos muito documento para FUNAI e out.

 

Aquele encontro no Hotel Pousada Araras, testemunhado pelo arco e fecha Guarani, desencadeou ações promovidas por Tião do Cimi que obrigaram a Funai a desengavetar a documentação produzida pela violência contra os Guarani do Jaguari. A decisão da 1ª Região da Justiça Federal reconheceu a omissão da administração pública e concluiu que “desde 2003 a Funai teria pleno conhecimento da situação de dificuldades que a comunidade indígena Guarani enfrenta, mas, mesmo diante disso, no ano de 2018, mais de 15 anos sequer havia sido constituído o grupo técnico” destinado a subsidiar estudos com vistas à demarcação da terra aos Guarani.

E o arco e a flecha continuam na parede do Hotel Pousada Araras

*Para conhecer mais sobre a luta Guarani pelo retorno à aldeia Jaguari, consultar http://novacartografiasocial.com.br/download/09-territorio-e-luta-do-povo-guarani-aldeia-jaguari-cocalinho-mt/

 

Anna Maria Ribeiro Costa é etnóloga, escritora e filatelista na temática ‘Povos Indígenas nas Américas’.

 

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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