As inovações legislativas trouxeram, além de muitas críticas por aqueles que entendem ter havido um afrouxamento ao combate a improbidade administrativa, algumas situações jurídicas que vão exigir dos advogados, membros do parquet e magistrados esforços interpretativos para evitar uma aplicação não uniforme e que cause injustiça a todos os que respondem a uma ação civil pública.
Diferentemente dos que afirmam ter havido complacência com aqueles que praticam atos de improbidade administrativa penso que as alterações produzidas foram mais benéficas do deletérias aos propósitos dessa legislação especial de proteção a probidade administrativa e ao patrimônio público. O perigo dos tipos abertos, causadores de insegurança jurídica e interpretações díspares, além de regras claras de dosimetria e garantia de produção das provas requeridas foram grandes avanços trazidos pelas alterações.
Igualmente, as alterações buscaram acima de tudo evitar as condenações absurdas que aconteciam, onde inexistia o ato doloso e até mesmo o dano ao erário, aliadas ao fato de que muitos representantes ministeriais se valiam das notificações recomendatórias para o dar o seu tom administrativo do perfil que entendiam como corretos aos agentes públicos e políticos, quase que como administradores de fato de alguns entes federativos menores e outros órgãos administrativos.
Ai daquele agente público quem não cumprissem as temidas notificações recomendatórias. Seriam logo submetidos ao crivo do Poder Judiciário com pedidos de indisponibilidade, afastamento de função pública, perda de direitos políticos, ressarcimento ao erário, etc. Afinal de contas, o membro do Ministério Público não erra, no máximo se equivoca, mas o difícil era que equívoco só poderia ser corrigido ao final de um longo e angustiante processo judicial.
Feitas essas ponderações iniciais, voltemos ao que nos motivou a escrever neste singelo artigo. No caso, a verificação da redação do novel § 3º do art. 21, trazido ao mundo jurídico pela Lei Federal 8.429/1992, onde está definido que somente as sentenças penais produzirão efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa da autoria.
Com todo o respeito ao legislador, ao assim ficar definido, houve o esquecimento dos casos referentes as decisões de arquivamento dos inquéritos policiais, quando há pedido do representante ministerial entendendo pela inexistência de autoria e acolhimento pelo juiz criminal.
Imagine-se o caso, bem real e palpável, diga-se de passagem, daquele agente público que responde não somente ao inquérito civil, mas também ao inquérito policial, ocorrendo de vir a ser neste último concluído pelo parquet que não é autor do fato também apurado na seara da ação civil pública e cuja promoção de arquivamento é acolhida por decisão interlocutória mista do magistrado competente.
Seria justo ele continuar a responder a ação civil pública pelos mesmos fatos? Só porque não foi proferida uma sentença criminal, na acepção técnica do termo, mas uma decisão interlocutória mista? Com a devida vênia de quem entender diferente parece-me que não, pois se não estaríamos criando uma clara situação de injustiça e de interpretação gramatical exacerbada.
Sabe-se que a lei não traz comandos inócuos e que suas lacunas ou possíveis situações de anomia ou incompletude podem ser resolvidas por outras formas, entre essas a hermenêutica. Nesse rumo, quando a lei necessitar dar o alcance necessário ao seu resultado ou a conclusão que pretendia ser obtida pelo poder legiferante quando a fez, os métodos de interpretação deverão ser sempre sopesados pelo bom julgador.
É o caso do novel § 3º do art. 21 da Lei Federal 8.429/1992, quando afirmou que somente as sentenças penais produzirão efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa da autoria, olvidando-se dos casos das decisões interlocutórias mistas como são as decisões de arquivamento de inquéritos policiais por promoção ministerial.
Evidente que o tratamento a ser dado a tal decisão é o da sua equiparação, in casu, a sentença criminal que reconhece a inexistência da autoria, espraiando-se os seus efeitos a esta ação civil pública, pois somente assim se alcançaria a vontade da lei, que é evitar o conflito de jurisdições na espécie.
E não há problema para que assim se possa interpretar e solucionar essa imperfeição, bastando ser chamada, quanto ao resultado ou conclusão obtida, a interpretação extensiva para dar a maior efetividade a lei em seus objetivos principais. No caso, evitar uma condenação cível divorciada da conclusão criminal sobre a autoria e sua existência.
Lembro que, nos bancos iniciais do propedêutico da faculdade de Direito, aprende-se que a interpretação extensiva serve para ampliar o alcance do texto da lei, adaptando-o à sua real vontade, pois o fato está implicitamente previsto ainda que não expressamente. A vontade do legislador aqui é, repita-se, evitar uma condenação cível divorciada da conclusão criminal sobre a autoria e sua existência.
Para tanto, interpretar extensivamente, servem-se os intérpretes da aplicação do conhecido axioma latino minus dixit quam voluit. O que pode ser vulgarmente explicado quando ocorre da lei dizer menos do que pretendia dizer, sendo inclusive admissível o seu emprego até mesmo nas normas penais incriminadoras e mais ainda nas normas penais que criam situações benéficas para os réus.
Assim sendo, ainda aplicam-se, para justificar a interpretação extensiva, os argumentos da lógica dedutiva, especificamente o argumento a fortiori, pois se a lei prevê um caso deve estendê-la a outro caso em que a razão da lei se manifeste com maior vigor, e o argumento a maiori ad minus, pois o que é válido para o mais deve também ser válido para o menos.
Ora, se inovação legislativa trazida pelo novel § 3º do art. 21 da Lei Federal 8.429/1992, com a redação da Lei Federal 14.320/2021, mandou aplicar as sentenças criminais que reconheçam a inexistência de autoria, isso em interpretação extensivamente a lex minus dixit quam voluit, logicamente a fortiori e a maiori ad minus, deve ser estendido ao caso da decisão interlocutória mista que acolhe promoção de arquivamento doparquet nesse sentido.
Em finalização, lembrando-se do moleiro de Berlim, que na verdade se quedava na atual Potsdam, por certo haverá juízes em Mato Grosso para verificar esse grave defeito que contribui para situações de injustiça extrema e corrigi-lo com a melhor interpretação jurídica para o alcance da vontade da lei, extinguindo-se as ações civis públicas em tais condições.
Antonio Horácio da Silva Neto é advogado, iniciou sua carreira jurídica como promotor de justiça do Ministério Público do Estado de Rondônia. Ingressou na magistratura no estado de Mato Grosso, onde exerceu cargos como juiz de direito substituto de segundo grau no Tribunal de Justiça, juiz membro do Tribunal Regional Eleitoral, diretor da Escola Superior da Magistratura de Mato Grosso e presidente da Associação Mato-grossense de Magistrados.