Cidades

Holocausto na Saúde Mental de Mato Grossso

Pessoas com transtornos mentais, usuários de droga e álcool são facilmente vistos pela cidade. Contudo, do que elas precisam? Por que padecem? No Brasil, muitos desses pacientes eram encaminhados para hospitais psiquiátricos, conhecidos como manicômios ou hospícios. Até que, em 2001, a Lei Paulo Delgado, que trata dos direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, foi aprovada.

Atualmente, em vez de manicômios, pessoas que apresentam intenso sofrimento psíquico, que lhes impossibilita de viver e realizar seus projetos de vida – seja por transtorno mental ou  uso de drogas e álcool – pode procurar os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) do município. A responsabilidade por esses centros é em parte do munícipio e em parte do Estado.

O CAPS funciona de “portas abertas”. Isso quer dizer que, para recorrer ao serviço, não é necessário ser encaminhado por nenhuma instituição. Segundo a Secretaria de Saúde do Estado do Estado (SES), a pessoa que chega a um CAPS será acolhida e escutada em seu sofrimento. Esse acolhimento poderá ser de diversas formas, de acordo com a organização do serviço. O objetivo no primeiro contato é compreender a situação da pessoa que procura o serviço e iniciar um vínculo terapêutico e de confiança com os profissionais.

A psicóloga, pesquisadora, docente e colaboradora do Conselho Regional de Psicologia, Morgana Moura, esclarece que em um surto, em que o paciente não tem ciência do que faz, é necessário acionar o SAMU para encaminhamento a um Hospital Geral. Diferente do que acontecia quando havia manicômios, quando os pacientes eram internados por anos, nesses sistemas as internações no hospital duram o tempo necessário para estudar o que causou a crise e maneiras de evitá-las.

“Esse usuário que vai pro hospital tem um leito específico, com equipe específica para atender transtorno mental e problemas com droga. A partir do momento em que ele sai da crise, ele é encaminhado para um CAPS – em questão de um a três dias”, explica.

Essa é teoria. Na prática, o projeto dos CAPS ainda precisa de muito subsídio da gestão pública. O atendimento nos hospitais, por exemplo, é feito de maneira deficiente. “A questão hoje é que nós não temos o funcionamento dessa rede dentro do município, nem é pensado também na área de transmissão e promoção de saúde na atenção básica. Mas não por falta de uma iniciativa dos técnicos, de uma mobilização por parte da equipe (funcionários), mas nós consideramos uma falta de mobilização das atuais gestões em relação a isso”, denuncia Morgana Moura.

A psicóloga diz ainda que os estereótipos que estão no entorno desses pacientes devem ser mudados, e que é necessário sensibilização política por parte dos gestores.

“Somado a isso, nós temos uma questão cultural e social atrelada ao transtorno mental. Considera-se que sempre essa pessoa vai ser agressiva e improdutiva socialmente. Há possibilidade de essa pessoa ser produtiva, mas não quer dizer que ela será agressiva. São rótulos que acabam sendo solidificados até mesmo pela mídia. Vemos muito isso em novelas, onde colocam pessoas com transtornos mentais como pessoas que têm necessidade de internação, e o usuário de drogas como aquele zumbi que anda pela rua. Quando na verdade pode ser qualquer um. Eu, você, um advogado rico. Não tem um estereótipo”, conta.

A especialista aponta a insuficiência das equipes para atendimento das demandas dos CAPS.
“Trabalha-se com o mínimo. O serviço não tem estrutura para atendimento. Não há ambulatório, médicos, psicólogos e profissionais suficientes, mesmo sendo exigida por lei uma cota mínima. E essa cota não está sendo atingida em Cuiabá e em nenhuma cidade do Estado. Mas em Cuiabá, em específico, a situação está grave”.

Segundo a prefeitura de Cuiabá, para um CAPS funcionar, é necessário uma equipe composta por psicólogo, assistente social, enfermeiro, médico clínico, médico psiquiatra, farmacêutico, técnico em enfermagem e outros profissionais. Svetainės vertimas https://skrivanek.lt/paslaugos/interneto-svetainiu-lokalizacija/

“HOLOCAUSTO NA SAÚDE”

“A saúde Mental está doente. Estamos vivendo um caos em que há tentativa de resistência e mobilizações e, ao mesmo tempo, há um enrijecimento dos gestores e até mesmo uma desconsideração deles com relação a nossa saúde mental”, descreve a psicóloga Morgana Moura.

Para ela, se a saúde mental continuar sendo tratada com desdém, é possível que revivamos o “Holocausto” dos pacientes.  “A gente pode entrar em um holocausto da Saúde Mental. A gente não tem em que se respaldar, até nas instâncias jurídicas. Tem muitos processos que já foram levados para o Ministério Público e até hoje não conseguimos mobilização. Não um holocausto feito como no Hospital de Barbacena, em que eles eram mortos dentro dos hospitais. Digo um holocausto pela falta de assistência. No sentido de abandono desse usuário, que é o mais prejudicado”.

“Ele não tem acesso à medicação, não tem acesso a uma terapia decente – enquanto o psicólogo não tem tempo para atender todo mundo, por que tem pouco psicólogo no CAPS. Esses pacientes não têm possibilidade de voltar ao convívio em sociedade, por que não há pessoas para contribuir para que ele tenha sua autonomia” pontua, explicando que essas pessoas acabarão vivendo à margem da sociedade, sem a ajuda necessária.

O Hospital de Barbacena ao qual a psicóloga se refere é conhecido pelo tratamento desumano que oferecia aos pacientes. A instituição com capacidade para 200 leitos, já teve mais de cinco mil pacientes em 1961. Na década de 60 e 70 estima-se que pelo menos 60 mil pessoas tenham morrido no Hospital Colônia de Barbacena. E é por isso que é conhecido como o Holocausto Brasileiro.

A cultura de exclusão do “diferente” ainda permanece.  A psicóloga crítica a “forma encontrada pela sociedade para eliminar o problema, prendendo esses pacientes em hospitais psiquiátricos. “É mais fácil eu abrir vagas num hospital psiquiátrico e prender essa pessoa do que possibilitar que ela tenha uma reinserção social”.

 POLÍTICA

A prova de que a saúde mental é menosprezada no Brasil, é de que o atual coordenador de saúde mental no Ministério da Saúde, Valencius Wurch, é ex-proprietário de um Hospital Psiquiátrico. “Nós estamos vivendo em uma lógica partidária. Uns que prendem e outros que não querem prender. Como se houvesse dois extremos. Mas não é assim que funciona. Temos que pensar que todo mundo tem um objetivo comum: a qualidade de vida do usuário”, diz a psicóloga Morgana Moura.

“Quem está na ponta, quem vivencia uma rotina de saúde que não tem nada para oferecer ao usuário, sabe a dor que é ver o usuário adoecendo na sua mão e você não ter o respaldo da gestão para fazer aquilo que você aprendeu a fazer”, critica. 

CASOS

A pensionista Geny Maciel da Costa, 75 anos, tem um neto que frequenta o CAPS AD (destinado a pacientes vítimas de álcool e droga) por ordem judicial. Ela conta que frequenta as reuniões junto ao neto e também vai às reuniões destinada a familiares há 6 meses. "As pessoas aqui conversam muito com a gente. Às vezes um fala uma coisa aqui, outro acolá, e aqui ouvimos pessoas que estudaram, sabem responder as dúvidas da gente. Aqui nós nos acalmamos”, explica Geny.

Segunda ela, o neto está impaciente, pois procura um emprego e não consegue encontrar. “Ele toma remédio controlado desde os oito anos, então ele tá querendo trabalhar, mas ele precisa de um atestado médico, eles não aceitam sem esse atestado. Ele é especial. É difícil e ele precisa trabalhar. Eu alugo um quarto na casa de uma família, a mãe dele mora no Rio de Janeiro e cuido dele”, além disso, ela conta que o neto cumpriu pena por quase três meses em uma cadeia local. 

O paciente do CAPS AD há seis meses, E.G.O., 52 anos, foi usuário de drogas e álcool. Ele prefere não se identificar porque diz que há um estigma sobre esses pacientes. “Um alcóolatra hoje vai estar sempre com um X vermelho marcado na cara. Ninguém vai olhar pra mim com o mesmo crédito que olha para um homem que não tem esse histórico”, lamenta.

E.G.O. conta que conheceu o CAPS após reunião dos Alcoólicos Anônimos (AA) que frequentava. “A programação do AA é dada para você se tratar. Eles dão as ferramentas e você se trata, mas às vezes a gente precisa de mais”. O CAPS fornece medicamentos para ele, além de consultas com o psicólogos, o que fez com ele se descobrisse com transtorno bipolar e de sono e o ajudou a permanecer limpo de drogas e álcool há seis meses.

CARTA ABERTA

Em meio às altas demandas do setor, o Fórum Permanente de Saúde Mental, do qual a psicóloga Morgana Moura é membro, entregou ao secretário de Saúde do Estado, Eduardo Bermudez, uma carta aberta “em defesa da reforma psiquiátrica e contra os retrocessos na saúde mental” no estado.

O secretário de Saúde deveria responder a entidade no dia 28 de abril, o que não aconteceu. Em contato com a assessoria de imprensa da pasta, a reportagem não obteve respostas até o fechamento desta edição.

Veja mais na edição 583 do jornal impresso

Cintia Borges

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