Maria de Fátima Nogueira, de 63 anos, vive em uma casa em frente às nascentes do Córrego da Prainha há 25 anos. Ela conta que a água da nascente costumava ser limpa, mas que desde que virou esgoto, ela e a família lidam diariamente com a sujeira. “Nós vivemos aqui atormentados com muito pernilongo, sapo, gambá e ratos enormes”, contou. Foi a necessidade de manter um ambiente habitável que levou Maria de Fátima por iniciativa própria, roçar o mato das margens do córrego. Desde então, ela virou a guardiã das nascentes da Prainha.
“Para eu ver isso aqui limpo, eu mesma é que tenho que limpar. A Prefeitura vem muito pouquinho para cá”, afirmou ao Circuito Mato Grosso. É assim que a senhora, duas vezes ao mês, coloca seu chapéu, faz uma meia de luva e, com a pesada enxada, tira a vegetação que cresce em rápida velocidade, principalmente durante as chuvas.
A nascente que a aposentada adotou para si é praticamente a semente da cidade de Cuiabá. Foi às magens do córrego que, em 1722, o bandeirante Miguel Sutil de Oliveira, depois de descer o o rio Coxipó para o rio Cuiabá, onde havia plantado roça, enviou dois índios para buscar mel. No retorno, ao invés do doce, eles trouxeram pepitas de ouro. Estava descoberta a terceira jazida aurífera mato-grossense, desta vez situada no leito do Córrego da Prainha, tributário do rio Cuiabá. A mina era tão rica que acabou atraindo milhares de moradores e dando origem à Vila do Bom Jesus de Cuiabá, a capital Mato-Grossense que esta prestes a completar 300 anos.
Com as descobertas das Lavras do Sutil, no morro do Rosário, antigo Tanque do Arnesto, teve início a ocupação da Região Central da cidade, à margem direita do Córrego da Prainha. No ano de 1723, nas proximidades do córrego, num lugar plano e mais elevado, foi construída a Igreja Matriz, dedicada ao Senhor Bom Jesus de Cuiabá. Próximo às minas, os escravos construíram uma capela dedicada a São Benedito. As minas e a Igreja Matriz foram importantes focos de atração do povoamento da cidade. Assim orientadas, foram surgindo ruas paralelas ao Córrego da Prainha, aproveitando as curvas de nível do terreno, e nelas levantadas as primeiras habitações que consolidariam o espaço urbano de Cuiabá. Às margens do córrego, surgiu a avenida Tenente Coronel Duarte, a primeira avenida da cidade.
No passado, durante o período das chuvas, o córrego era caudaloso e ainda recebia água do Rio Cuiabá. Os pescadores chegavam em suas canoas até o trecho, onde funciona o Ganha Tempo, na Praça Ipiranga. Até o ínício do século XX a população pegava água na bica da Prainha, que ainda existe simbolicamente, e no Chafariz do Mundéu, na Praça Bispo Dom José. Mas a poluição das águas do corrégo foi afastando os moradores e aumentando o abandono desse importante curso de água.
Após 1968 grande parte do córrego foi canalizada por meio dos programas de urbanização e modernização de Cuiabá, que levaram também a demolição da antiga Catedral do Bom Jesus de Cuiabá. Restou como testemunha da história do córrego apenas a região de suas nascentes.
Abandono pelo poder público
Não há sequer uma sinalização no local, mas a nascente do córrego da Prainha fica no Bairro Alvorada, em uma região nobre de Cuiabá e sofre com o descaso do poder público. Os moradores reclamam da falta de cuidados que trazem o mau cheiro e um crescente matagal que tornam o ambiente propício para animais selvagens, como os gambás. O lixo também é depositado às margens do córrego, aumentando a poluição e acumulando água e auxiliando a proliferação de mosquitos. O extenso matagal, que segundo os moradores só recebe a visita da Prefeitura uma vez ao ano, hoje serve de esconderijo para ladrões e traficantes.
Maria de Fátima, a guardiã das nascentes, dedicou os últimos 15 anos de sua vida à limpeza do seu “quintal”. Ela, além de roçar, ainda coloca veneno para inibir o avanço do mato, produto que paga com seu dinheiro. Cada galão de um litro custa em média 40 reais, e a cada seis meses ela desembolsa R$ 80,00 para comprar o pesticida. “Eu faço tudo isso para não ter cobra dentro da minha casa”, relatou.
A filha de Maria de Fátima, Michelly Nogueira, mora em uma residência ao lado da mãe e compartilha as mesmas queixas: o mau cheiro e a presença de bichos. Ela também reclama dos entulhos jogados no córrego, que colocam em risco a saúde de quem ali vive. A segurança é um fator que preocupa a jovem, pois bandidos fogem para o matagal e ela e sua família ficam suscetíveis a ataques.
"Quanto mais mato tiver aqui, mais perigoso é para a sociedade. Eles entram pelo terreno baldio que tem ao lado, que ninguém cuida, e o mato é o esconderijo deles. Eu me sinto insegura, especialmente à noite, porque eles podem nos pegar de surpresa”, disse Michelly. Mãe e filha se preocupam com a situação e pedem auxílio dos órgãos responsáveis pelo cuidado com a nascente. Cansados do desleixo, os habitantes do lugar clamam por serem tratados com dignidade.
A Prefeitura de Cuiabá afirma que irá implantar um programa para recuperação das nascentes
Ao ser questionada pela reportagem do Circuito Mato Grosso, a Prefeitura enviou a seguinte nota oficial. "Buscando assegurar o desenvolvimento hídrico sustentável, bem como evitar possíveis complicações com o abastecimento de água potável na Capital, a Prefeitura de Cuiabá deu início, em novembro de 2017, a implantação de um programa de recuperação e preservação de nascentes distribuídas na área urbana da cidade. A ação faz parte de uma parceria firmada com o Ministério Público do Estado de Mato Grosso (MPE-MT), e conta ainda com a participação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Instituto Ação Verde e Águas Cuiabá.
Denominado projeto "Água para o Futuro", a iniciativa tem como ponto de partida a nascente do Córrego Gumitá, no bairro Morada do Ouro, onde já foi iniciado o trabalho de recuperação da fonte e também o serviço de urbanização da área verde.
O programa de recuperação será ampliado para outras regiões onde já foram identificadas diversas nascentes, dentre elas a do Córrego Prainha. Ainda não foi definida uma data para começo desse trabalho no local. Todavia, a Prefeitura de Cuiabá continuará executando, periodicamente, o trabalho de limpeza e manutenção."
Até o projeto chegar ali, as nascentes da Prainha seguem os caminhos das misérias das impurezas, tal qual a poesia de Francisco Mendes. "Córrego da prainha! Como peregrino deixas de ser nas ferocíssimas paragens da terra (…) oásis de fartura, para constituíres relíquia desprezada, tão cheia de saudade do tempo, em que abrias o leito fértil de promessas e de anseios, de dádivas de beleza (…) apenas um traço recordativo (…) não piam em tuas matas as Jaós, nem a Saracuras entoam duetos alegres (…) Mudo, segue os caminhos das misérias das impurezas", escreveu o poeta no livro Lendas e Tradições Cuiabanas, de 1977.