De acordo com os novos decretos, o prefeito – que chegou a afirmar que ninguém sairia da comunidade a não ser por vontade própria – passa a considerar os imóveis como de "utilidade pública", o que abre o caminho judicial para a remoção.
Originalmente abrigando quase 600 famílias, a comunidade foi sendo removida aos poucos nos últimos meses. Segundo a Prefeitura, 344 famílias concordaram em mudar-se para o Parque Carioca, conjunto de moradias construído especificamente para abrigá-las, e outras 108 negociaram indenizações para abandonar suas casas.
Outras 131 famílias ainda estariam no local e, dessas, 43 tinham assinado um documento oficializando a intenção de permanecer e não negociar valores por suas casas.
"Está sendo muito duro. Fomos surpreendidos, porque até então o prefeito vinha negociando com a gente", diz Altair Guimarães, presidente da Associação de Moradores da comunidade.
Ele explica que das 43 famílias que até então se mantinham irredutíveis e se negavam a negociar indenizações, ao menos três já deixaram o local.
"Estamos perdendo a luta para o dinheiro. Mas como eu vou dizer para um pai de família que batalha para ganhar dois salários mínimos não aceitar a indenização oferecida?", pergunta.
Consultada pela BBC Brasil, a Prefeitura disse em comunicado que 280 famílias se encontravam no traçado das obras de canalização de rios e de duplicação das avenidas Salvador Allende e Abelardo Bueno – apresentadas como justificativas para os imóveis serem considerados como de "utilidade pública".
"Das 280 famílias que estão no traçado da obra, 204 optaram pelo imóvel no Parque Carioca. Com as demais, a Prefeitura iniciou um processo de negociação. Dessas, 18 entraram em acordo com o município e foram indenizadas. As demais não chegaram a acordo após mais de um ano de negociação e, devido à necessidade da realização das obras, seus imóveis foram incluídos em decreto que os tornou bens de utilidade pública. Tanto o valor da indenização como o prazo da saída serão definidos pela Justiça", diz a nota.
A Prefeitura acrescentou ainda que o processo de negociação tem sido "transparente, com a realização de diversas reuniões coletivas de esclarecimento e atendimento individual das famílias".
'Batalha judicial'
Na prática, as medidas determinam que mesmo os que se recusaram a negociar até o momento poderão ter que sair. Isso porque os decretos assinados pelo prefeito até permitem recursos, mas a tendência é que as casas sejam removidas e discordâncias sobre valores sejam resolvidas em tribunais posteriormente.
Para Sérgio Guerra, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas e especialista em administração pública, os casos recentes mostram que, ao classificar os imóveis como de utilidade pública, os governos dificilmente perdem as "batalhas" judiciais.
"Está tudo dentro da lei. Apesar de se basear num decreto-lei federal muito antigo, de 1941, os decretos estão absolutamente dentro da lei. Vai ser difícil contestar. O que tende a ser alvo de discussão é o valor das indenizações", conta.
Guerra explica que os moradores podem entrar com recurso em primeira instância e a "luta" pode se estender até o Supremo Tribunal Federal. No entanto, para garantir a demolição das casas, a Prefeitura pode depositar em juízo o valor estipulado por um perito, e entrar com uma liminar que garanta a remoção enquanto o processo continua.
"Claro que qualquer liminar pode ser derrubada, mas dificilmente isso acontece nesses casos. Um juiz levará em conta o interesse coletivo, de um lado, já que o decreto argumenta pelo interesse público, e o interesse particular, de um morador, do outro. A tendência é que as casas sejam demolidas enquanto o processo continua tramitando", diz.
Polêmica
Para os moradores que se engajaram na resistência da comunidade ao processo de remoção, este é um momento crucial.
Jane Nascimento integra a Associação de Moradores e mora logo na entrada da comunidade. Sua casa é uma das 58 incluídas nos decretos de Eduardo Paes.
A casa da vizinha, que fez um acordo de indenização com a Prefeitura, terminou de ser demolida nesta segunda-feira. Emocionada, ela falou com a BBC Brasil enquanto caminhões terminavam de carregar o entulho que restou da moradia da vizinha.
“Eu não posso sair daqui sem nada. Vou ser obrigada a negociar, e não vejo nada que favoreça a gente. A luta está sendo feita, mas a violência está bem clara. Criou-se esse decreto para fazer a gente sair de qualquer maneira, porque insistimos até agora”, diz.
A reportagem da BBC Brasil percorreu a comunidade e testemunhou tratores carregando escombros de casas recém demolidas.
Controvérsias
Para Renata Neder, assessora de direitos humanos da ONG Anistia Internacional, que vem acompanhando remoções no Rio de Janeiro desde o período da Copa do Mundo, faltou transparência e coerência da administração pública no processo.
Ela relembra que desde o início das obras no Parque Olímpico, a Prefeitura já tentou defender a remoção da Vila Autódromo citando a riscos ambientais, depois a construção de uma alça viária para a estrada Transolímpica, depois disse que o local abrigaria o Centro de Mídia, e por fim um estacionamento, antes de informar que as obras seriam de canalização de rios e duplicação de avenidas que dão acesso ao Parque Olímpico, recentemente.
Neder diz que acordos firmados entre a administração e os moradores foram quebrados e afirma que nos planos iniciais de construção do Parque Olímpico não se via como essencial a remoção da Vila Autódromo.
“Numa cidade como o Rio de Janeiro, é muito difícil fazer qualquer obra que não incorra em deslocamento de moradias. Mas a diferença é como você planeja essa obras, para que se tenha o menor impacto possível sobre o direito à moradia, e como você se comunica com as famílias e as compensa pelas perdas”, diz.
Fonte: iG