Opinião

Folheando Recuerdos

Texto e foto de Valéria del Cueto

Estou voltando ao meio do mundo depois de uma temporada carioca. O que significa que dele poderei ir a qualquer lugar ao fazer uma das coisas que mais gosto: mergulhar na leitura.

Depois de um tour de force pela mais longa dinastia da Rússia Imperial, de um passeio pelos meandros do zoológico do Barão de Drummond e os mistérios do jogo do bicho, uma temporada em Cuba na passagem de Obama e dos Stones pela ilha, durante a solução do roubo do sinete de Napoleão (num caso policial do detetive Mário Conde), precisei usar meu valioso tempo pra me dedicar a questões burocráticas.

Não, caro leitor. Não mencionarei essa aventura kafkaniana inconclusa. Daria um tratado que não caberia numa série, o que dirá numa reles crônica. Andei tudo que podia e, claro, ainda não resolvi quase nada. Porém, mais do que fiz não poderia fazer no momento. É tempo de esperar respostas e certidões.

Para desopilar caí no samba na Noite do Enredos. O evento agitou a Cidade do Samba, no Rio de Janeiro,  reunindo 7 mil pessoas para acompanhar performances audiovisuais e musicais das 12 escolas da elite carnavalesca carioca. Cada agremiação teve 12 minutos para apresentar o tema que desenvolverá na Sapucaí em março do ano que vem.

O destaque foi, sem dúvida, a Portela. Seu homenageado no enredo do próximo carnaval, o cantor Milton Nascimento, surgiu no palco e saudou o público ao final de uma imersão em clássicos de seu repertório.

Outros eventos, promete Gabriel David, presidente da Liesa, ocuparão o espaço que reúne os barracões do Grupo Especial na temporada.  Para alegria do povo do samba, apreciadores e turistas que alimentam a economia do já presente carnaval 2025.

Tomei rumo, voltei pro paraíso e, daqui, parti para a Índia dos marajás, no começo do século XX. O que traz esse assunto às crônicas não é o que leio. Mas como leio. O livro era da minha avó. Na primeira página, a do título, seu nome e o ano que chegou a sua biblioteca: “Ena, 2006”. Foi o que me estimulou a escolhe-lo numa estante do apartamento de Copacabana.

Só quando cheguei no meu local preferido de leitura é que atentei às frágeis condições do volume. Acontece que a cola da brochura ressecou e as páginas, muitas delas, se soltaram. Para recupera-lo só fazendo uma nova encadernação. Pensei em desistir da empreitada “É difícil ler um livro assim desmantelado”, pensei folheando cuidadosamente suas folhas que iam se descolando cada vez mais.

Quando ia tomar a decisão um maço ainda colado se abriu na página 150 e, mais uma vez, lá estavam elas. Três letras escritas a caneta que indicavam a presença da avó na saga indiana. Ena. Em letras cursivas de uma caligrafia impecável. Tão linda a ponto de ser ela a encarregada de escrever as mensagens enviadas ao Vaticano pelas freiras do Colégio Sacré-Coeur de Jésus, onde a menina Maria Ena e sua irmã Júlia foram alunas internas na infância e na adolescência.

Acontece que, leitora voraz, minha avó escrevia seu nome em todos os seus livros a cada 50 páginas. Em alguma parte delas. Normalmente, entre os parágrafos do lado externo da página sem nunca o fazer, ao que me lembro, onde houvesse texto impresso. Sempre em espaços em branco.

Tem até uma história pitoresca de que ela emprestou um livro para um vizinho e ele, ao devolver, comentou ter reparado nas assinaturas e as relacionou com o que era mencionado nos textos, abordando o que achava que ela “havia destacado”. Dona Ena, a gentileza em pessoa, não teve coragem de esclarecer que não havia a relação mencionada, apenas uma questão aritmética e de espaço adequado para que desenhasse seu nome…

É ele que, impacientemente, me fez encarar o livro desmilinguido de sua biblioteca que nunca li. A certeza de que, a cada página terei a alegria de saber que sim, ela também esteve na Índia e viajou na mesma leitura que me espera.

Tomara que o livro seja bom. Antes de encontrar a segunda assinatura já posso dizer que há fineza na estrutura narrativa. Ela, como a vida, não é linear. Já me levou à Málaga, Madri, Paris e desembarcou em Bombaim para fazer um longo trajeto de trem rumo ao exótico mundo indiano do início de 1900 que se desfolha em minhas muito cuidadosas e pouco habilidosas mãos.   

Valéria del Cueto

About Author

Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Essa crônica faz parte da série “Ponta do Leme”, do SEM FIM... delcueto.wordpress.com

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