A punição para quem comete o crime de estupro de vulnerável, conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos varia de oito a 15 anos de reclusão. Se somadas a quantidade de estupros em Mato Grosso pelo valor mínimo da pena, daria 6.776 anos de cadeia, dos 847 registros do crime em 2016.
Segundo dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública de Mato Grosso (Sesp/MT), houve um aumento de 34% em relação ao ano de 2014, quando foram registrados 632 casos no ano inteiro. Já em 2015, o número saltou para 764, registrando aumento de cerca de 20%, em 2016, até o mês de novembro, foram 847 registros.
Caso semelhante e de grande repercussão aconteceu em Cuiabá, quando o vereador por Cuiabá, Chico 2000, foi acusado de estupro de vulnerável contra a enteada de 11 anos. O caso teria ocorrido no dia 13 de outubro em uma festa de aniversário da mãe da vítima.
Chico 2000 teria acompanhando a garota até o quarto e a acariciado. Com medo de estragar a festa de aniversário da mãe, que era namorada do vereador, a suposta vítima preferiu esconder o segredo e veio a revelar o caso no dia 16 de novembro.
A menina então pediu socorro à tia paterna, que fez a denúncia. A Justiça determinou a prisão temporária do vereador no dia 4 de dezembro e, desde então, ele segue preso. A partir disso, a Delegacia Especializada da Criança e do Adolescente (Deddica) apura supostas denúncias anônimas contra o parlamentar. Em entrevista exclusiva ao Circuito Mato Grosso, Chico 2000 negou as acusações feitas pela enteada e disse que tudo não passa de uma mentira.
Segundo o delegado da Deddica, Eduardo Botelho, a maioria desses estupros ocorre dentro do ambiente familiar, praticado por pessoas que se aproveitam de um vínculo de proximidade com a vítima. O delegado estima ainda que os casos aumentam aproximadamente 5% ao ano.
“Está ocorrendo um combate maior a essa prática criminosa por conta do combate mais efetivo a este tipo de crime, o que também tem motivado o surgimento de novas denúncias”, contextualiza Eduardo Botelho.
Perfil
O delegado explica que não existe um perfil do abusador, que pode ser uma pessoa de 18 anos, como um senhor de 70. O crime estupro de vulnerável, segundo Botelho, não é a conjunção carnal apenas, mas qualquer ato libidinoso envolvendo criança ou adolescente menor de 14 anos. E também pessoas que têm a sua capacidade de discernimento reduzida de alguma forma.
Mesmo com consentimento da vítima há crime
O Promotor de Justiça da Promotoria de Infância e Juventude de Cuiabá, José Antônio Borges, explica que mesmo quando há consentimento, trata-se de uma violência presumida, pois a criança ou adolescente menor de 14 anos não possui plena consciência de seus atos.
“Esse consentimento é nulo. O fato de ele manter relações com uma menor abaixo de 14 anos já caracteriza uma violência em si. Não faz diferença dizer que pegou na amarra e que botou uma arma na cabeça”, argumenta o promotor.
De acordo com Borges, as penas para quem comete este tipo de estupro variam de oito a 15 anos, dependendo da gravidade do ato libidinoso. Porém em muitos dos casos, não ficam vestígios do abuso, já que o crime não é apenas a penetração, mas qualquer ato libidinoso como passar a mão nas partes íntimas ou outro ato lascivo. “Tudo é estupro”, afirma o promotor.
Para comprovar se a criança sofreu ou não o abuso sexual, são tomados dois caminhos : a realização do Exame de Corpo de Delito e o Estudo Psicossocial.
Borges aponta ainda que é muito difícil para a criança reconhecer que foi agredida, porque isso fica ‘encapsulado’, impedindo a vítima de processar esse dado. A vítima ainda se sente abusada, mas “ao mesmo tempo se sente culpada, traumatizada e não expressa isso”.
O trabalho da Promotoria de Infância e Juventude se dá paralelo ao trabalho da Polícia Civil e do Conselho Tutelar, e visa à proteção social da vítima. Quando o Conselho Tutelar encaminha algum caso que aponta indícios de estupro de vulnerável, é determinado o afastamento do agressor da vítima, relata o promotor
O promotor esclarece também que o agressor pode ser qualquer um, sem distinção de grau de parentesco ou proximidade. “O trabalho da Promotoria é fazer a proteção social desta vítima. Se o pai for o agressor, tira do poder familiar. Se for um vizinho é pedido o afastamento deste”, pontua José Antônio Borges.
20 casos suspeitos em outubro no Pedra 90
Casos de estupro de vulnerável são constantes no Conselho Tutelar do Bairro Pedra 90, na região Sul de Cuiabá. Segundo o conselheiro tutelar Marcivon Nunes, apenas no mês de outubro deste ano foram registrados quase 20 casos informalmente, que se tratava de suspeita de crime.
Marcivon argumenta que a média de casos, mensalmente, pode chegar a 30 registros de suspeitas de estupro de vulnerável. Ele ainda reclama que é difícil conseguir dar prosseguimento à denúncia contra o suposto abusador. Muitas vezes, são encontradas barreiras dentro da própria força policial para apurar o crime.
Marcivon esclarece que o Conselho leva as crianças para registrar o Boletim de Ocorrência (B.O) na delegacia para fazer o exame de corpo de delito e encontra dificuldade dentro das delegacias.
“Tem a dificuldade dentro da própria polícia por falta de estrutura. Não conseguimos fazer o boletim de imediato, em algumas ocasiões tem que ficar esperando duas, quatro horas. Às vezes até com sémem, porque como já foi estuprada fica sujeira, e dificulta a criança de tomar um banho”, declara Nunes.
Acompanhamento psicológico é fundamental
Para a professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Tatiane Dias, crianças que passam por situações como essas precisam de acompanhamento psicológico para compreender o que aconteceu e para aprender a lidar com a situação.
Muitas pessoas conseguem guardar o acontecimento quase pela vida toda, mas, segundo a psicóloga, isso pode afetar o desenvolvimento, fazendo com que ela tenha medo de viver ou até mesmo de se envolver em relacionamentos.
Para dar prosseguimento ao tratamento, a psicologia toma como partida o desenvolvimento cognitivo da criança, idade e a estrutura familiar da vítima para entender o que aconteceu e oferecer ferramentas e mecanismos para que a criança possa lidar com isso.
A psicóloga explana que uma criança de cinco anos vai ter entendimento totalmente diferente de uma criança de sete anos, por exemplo. São estágios de desenvolvimento diferente e faz com que os psicólogos busquem compreender o desenvolvimento antes do “ato adverso” e depois do ato.
Tatiane Dias afirma ainda que uma criança que passa por tal situação desenvolve métodos de lidar com o trauma de maneiras diferentes e que são observados dois indicadores de comportamento. Os indicadores de ansiedade e de depressão, que pode fazer com que ela desenvolva comportamentos como se tornar mais introvertida ou agressiva.
“A gente interpreta esses comportamentos como uma forma de resposta dela a essa situação, porque de alguma forma ela vai ter que lidar com o problema. Ela também pode perder o apetite, desenvolver depressão e se isolar socialmente”, informa Tatiane.
Dependendo do nível de desenvolvimento da criança, são utilizados diversos métodos para fazer com que ela se expresse e conte o que aconteceu consigo. Para isso são utilizadas brincadeiras, atividades lúdicas, jogos e a conversa propriamente dita. O profissional terá que entender o que aconteceu, para, assim, oferecer ferramentas que vão munir a vítima para lidar com a raiva e o sentimento de tristeza.
Tatiane esclarece que é importante que a criança passe por esse tratamento porque, assim, ela tem a chance de expressar os seus sentimentos e um profissional poderá lhe ensinar a lidar com essas sensações. A psicóloga defende ainda que tentar esconder ou “fingir que nada aconteceu” não ajuda a resolver a situação e que em algum momento da vida, a vítima sentirá a necessidade de falar com alguém sobre o que sofreu.
“O aconselhamento psicológico vai ser muito importante para munir a criança, dar a ela condições de lidar com o problema em diferentes etapas de desenvolvimento da vida. Trazer a tona é sempre bom para. A partir daí, a pessoa desenvolver formas de enfrentar o problema”, disse Tatiane Dias.
Médica se recusa atender criança vítima de estupro e é condenada pelo TJMT
Muitos usam o argumento injusto de que a culpa é sempre da vítima, seja porque gosta de sair à noite, anda com companhias que podem não ser das melhores ou gostam de usar roupas curtas. Nada disso faz sentido, ainda mais quando se trata de uma vítima menor de 14 anos, que ainda não possui total discernimento sobre o ato sexual.
Em Rondonópolis (212 km de Cuiabá), uma médica pediatra se recusou a atender uma criança de sete anos vítima de estupro. Ela alegou que a vítima tinha que “se responsabilizar”, pois teria vivido em vidas passadas vida indigna e estaria pagando nesta vida. A médica foi condenada pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) a indenizar moralmente a mãe de vítima em R$ 10 mil.
Para a presidente da Associação de Conselheiros Tutelares e Ex-conselheiros de Mato Grosso (ACT/MT), Iraides Quirino, a vítima nunca tem culpa e o comportamento da médica atrapalha o trabalho para investigar e apurar o crime. “Quando um médico se recusa a atender alguém e dar um laudo sobre o caso, fica mais fácil para os abusadores, porque se não tem atendimento médico não dá para a polícia civil investigar”, reforça Iraides Quirino.