Cidades

Estupro não tem hora, nem lugar

Foto Maria Reis/Neriely Dantas

Segundo relatório produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), são contabilizados no Brasil 50,6 mil estupros por ano, sendo 1 a cada 10 minutos. O caso de estupro coletivo contra uma jovem de 16 anos ocorrido no Rio de Janeiro mobilizou todo o país nas últimas semanas e trouxe à tona a cultura de estupro e a epidemia de abusos que acontece no Brasil. Contudo, este caso não é o padrão de estupro no país, grande parte acontece na surdina da vida de cada mulher, sem vídeo publicado na internet, comoção nacional e sem virar denúncia.

De acordo com o próprio relatório do Ipea, a cifra de 50,6 mil estupros por ano corresponde apenas aos casos que são denunciados. Estima-se que o número total seja quase 10 vezes maior e que uma mulher seja estuprada a cada 1 minuto no país. Uma característica do estupro no Brasil é que não há um grupo de mulheres que esteja protegido contra o crime, seja ela de qualquer faixa etária, classe social, raça, estado civil ou grau de instrução.

O estupro é severamente punido na legislação brasileira. Recentemente as penas foram alteradas, variando de seis anos (pena mínima) a 30 anos, caso o estupro resulte em morte. Sua definição também foi ampliada em 2009, de forma que atualmente é considerado estupro qualquer ato libidinoso que resulte no constrangimento de uma pessoa, sem ter havido necessariamente penetração.

Um exemplo é o caso ocorrido em dezembro de 2015, em Várzea Grande. Quando Volmar Rodrigues, 38 anos, se masturbou dentro de um ônibus no terminal Maggi e ejaculou nas costas de uma passageira.  Pela legislação atual o ato se configura como crime de violação sexual e o agressor foi, inclusive, autuado por esse delito. Portanto, se a legislação para os abusos sexuais está a contento, tanto na definição do crime, quanto nas penalidades, por que estupros continuam a ocorrer com frequência epidêmica?

Cultura do estupro

Para Rosana Leite, integrante do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública de Mato Grosso e presidente do Conselho Estadual de Direitos da Mulher, o problema é cultural e se baseia na construção machista da sociedade, em que a violência contra a mulher é naturalizada. A defensora faz coro com o Ipea, que em sua pesquisa explica o alto número de homens estupradores e mulheres vítimas de abuso, como um reflexo da cultura do estupro. O relatório mostrou que 90% dos estupros são cometidos por homens e as vítimas são 90% mulheres e cerca de 10% garotos do sexo masculino de até 13 anos.

“A forma como as pessoas encaram os delitos de violência sexual contra a mulher é um sintoma da cultura do estupro. Este tipo de crime ainda é encarado de forma menos grave que os demais delitos, sendo que na verdade ele é gravíssimo. Há necessidade de um tratamento diferenciado, para que as mulheres tenham mais força, entendam que a lei é efetiva e se sintam seguras para denunciar”, afirmou Rosana.

Relato de K.

“A primeira vez que aconteceu comigo eu ainda era adolescente. Fui visitar um amigo meu, mas ele não estava, somente o pai dele que eu conhecia há muito tempo. O ‘tio’ me disse que eu poderia esperá-lo que ele já estava chegando. Sentei e esperei. O pai do meu amigo todo galanteador e puxando conversa, me ofereceu bebida e eu recusei. Recebi uma ligação de outro amigo que estava de moto, pedindo para me ver e que ele iria me buscar onde eu estivesse, passei o endereço e desliguei. Ao desligar o telefone fui surpreendida com a fala do monstro ‘você não pode trazer homem para a frente da minha casa’. Ao me levantar do sofá, ele me deu dois socos na cara, que fez com que eu caísse de volta no sofá.  Escorreu muito sangue de dentro do nariz e do corte que abriu em cima do mesmo. Minha visão ficou turva e eu não sabia o que fazer. Meu medo era de ele continuar a me bater até morrer, pois ele estava transtornado. O tempo todo me xingando e gritando comigo por estar pingando sangue pela casa. Ele me levou para o banheiro e colocou pó de café para estancar o sangue. Pensei que era um tipo de trégua. Me enganei. Ele trancou a porta do banheiro e tirou a calça. Ameaçando me bater mais e gesticulando sempre com agressividade, me obrigou a fazer sexo oral nele. Fiz. Não vi outra saída a não ser fazer o que ele estava mandando. Senti muito medo de morrer. Minutos depois eu peguei uma chave inglesa que servia para abrir o chuveiro e tentei matá-lo. Ele caiu no chão do banheiro. Foi quando consegui correr e fugir da casa dele. Poderia ter morrido.”

O “terror das meninas”

Quando os pais começam a notar os indícios de desejo sexual nas crianças é comum que haja comemoração. Dos pais de menino, muitas vezes ouvimos dizerem orgulhosos: “Segurem suas cabras, que meu bode está solto” ou “Esse aí vai ser o terror das meninas”. Qual é o grau de humor em dizer que seu filho será o “terror das meninas” em uma realidade que uma mulher é estuprada por minuto no Brasil e 90% desses crimes são cometidos por homens?

Para a defensora pública Rosana Leite é necessária a desconstrução da cultura machista desde o berço. “Um pai e uma mãe não criam um menino para ser estuprador, jamais irão fazer isso, mas criam um menino mostrando que ele é superior à menina. Apenas neste fato várias situações de violência já foram criadas na cabeça dessa criança, então há a necessidade de mudarmos. Pais, mães, educadores e toda a sociedade têm obrigação de mudar a cultura e quebrar paradigmas, principalmente com as crianças”, declarou.

A filósofa Marcia Tiburi defende que devemos nos atentar mais para a figura do homem quando discutimos a temática do estupro, e questiona como a masculinidade é construída socialmente: “Pensamos muito na vítima, porque assim é a lógica do estupro. Aqui devemos começar a nos ocupar dos homens. Os próprios homens, potenciais estupradores, podem questionar-se sobre o sentido de ser algo como um ‘homem’ em nosso mundo. Penso que esta pergunta pode nos ajudar a pensar o estuprador que a sociedade (pais, professores, instituições, meios de comunicação de massa) cria diariamente.”

Estuprador também é pai e tem pós-graduação

Assim como as vítimas de estupro pertencem às mais diversas classes sociais, etnias e níveis de escolaridade, os agressores também estão presentes em todo e qualquer meio. A sensação da maioria das pessoas é que a brutalidade de um abuso seria incompatível com o ambiente intelectualizado de uma universidade ou com a confiança que inspira um ambiente familiar, contudo, histórias de mulheres provam o contrário.

Em abril deste ano, alunas da Universidade Federal de Mato Grosso realizaram o “Ato das Mulheres: Chega de estupro na UFMT” para cobrar da universidade uma política de combate aos abusos dentro do campus. Entre outras demandas, o grupo reivindicou a criação de um Centro de Referência para recebimento e contabilização das denúncias de violência na UFMT e uma política da universidade de combate ao machismo.

A estudante de geografia Jacqueline Oliveira afirma que essas ações “são importantíssimas para a permanência dessas alunas na instituição. As universidades não se atentam para a importância de isso ser um programa contínuo para melhorar a convivência naquele ambiente, e não apenas uma pauta secundária em que bastam ações pontuais. Se preocupam com a assistência estudantil no quesito financeiro, mas não se preocupam em prestar assistência para que as estudantes tenham condições psicológicas de permanecer neste espaço”.

Segundo a reitoria da UFMT, há 8 denúncias de qualquer tipo de violência ocorrida no campus, mas para Jacqueline os crimes da universidade também são subnotificados. “Muitas denúncias não são protocoladas, então a universidade alega que não sabia. Não existe uma pró-reitoria que cuide especificamente disso. A Pró-Reitoria de Assistência Estudantil cuida de todas as demandas de assistência social e mais essas, mas nós queremos uma pró-reitoria específica pra cuidar desses casos, porque muitas vezes ocorrem e nós não temos a quem buscar. Além do medo de ser exposta, por conta da perseguição que acontece. Então muitas vezes a vítima acaba silenciando, por medo e por saber que dificilmente vai ter resolução.”

Relato de Y. C., 21 anos.

“Tudo começou quando eu tinha 5 anos. O primeiro episódio do abuso que percorreu anos da minha infância e adolescência foi durante uma festa da família. Ainda lembro nitidamente da cena em que fui ao banheiro dentro de um dos cômodos e quando saí topei com meu tio bêbado no meio do quarto pedindo para que eu me aproximasse dele, ele estava de short aberto com o pênis para fora e me puxava pelos braços e dizendo para eu pegar. Consegui me desvencilhar com muito custo e sair correndo. 

Ele sempre foi um cara simpático com as pessoas, bem-quisto, humorista, o que fazia toda família desviar os olhares dos atos de pedofilia. 

Por muitos anos isso prosseguiu, as mãos apalpando meus seios em desenvolvimento, tentativas de me acariciar a qualquer custo, era tudo de forma sorrateira aos olhares dos outros. Eu tinha medo de falar, medo de ser culpada, medo dos meus pais, medo de não entender, o medo era o que me dominava na presença dele. 

Levei amigas para eventos familiares algumas vezes, tínhamos entre 10 e 11 anos, e por mais que eu as avisasse para manterem distância dele, ele tentava atraí-las para perto, com brincadeiras, com piadas… Elas sempre sentiam o mesmo que eu, entendíamos o que era se sentir invadida. 

Eu era a mais caçula das primas, todas outras mulheres da família tinham namorados e com a maturidade reconheci o quanto isso refletiu na minha construção como forma de relacionar, achei que se tivesse um namorado iria me proteger, me proteger do meu abusador, do meu tio. 

Isso tudo continuou até os 13 anos em que decidi me afastar dos parentes, não frequentar festas de família, me isolar de qualquer afetividade que envolvesse para não me ferir, qualquer criança reflete aquilo que foge da ordem natural da felicidade, é reativo. Fui julgada como errada, como criança rebelde, como louca e desordenada, o que nunca souberam (ainda não sabem), é quanta tristeza habitava dentro de mim. 

É um mundo perigoso para ser mulher, até mesmo dentro do seu círculo mais confiável.”

Denuncie: Saiba seus direitos e onde deve ir

1. Se a mulher está em uma situação de abusos recorrentes, pode buscar orientação gratuita com a Defensoria Pública de Mato Grosso, no Núcleo de Defesa da Mulher, ou pelo número 180.
2. Se o estupro acabou de ocorrer, a vítima deve buscar uma Delegacia de Polícia da Mulher e caso não haja, uma delegacia de polícia comum.  É importante que a vítima não tome banho, pois os vestígios corporais são provas do abuso.
3. Na delegacia faça o boletim de ocorrência e mencione o máximo de detalhes possíveis sobre o crime, como as características do agressor e onde ele pode ser encontrado.
4. Após o boletim, a vítima será direcionada para o Instituto Médico Legal (IML) para fazer o exame de corpo de delito. Nessa fase ela tem direito à pílula do dia seguinte e coquetel para prevenção de AIDS e outras DSTs. Ela será encaminhada para algum hospital público, caso tenha ferimentos e/ou o IML não tenha esses medicamentos para oferecer.
5. Se a mulher apresentar ferimentos graves em decorrência da agressão, ela tem direito à cirurgia plástica reparadora gratuita, realizada pelo SUS.
6. Caso fique grávida, a lei autoriza o aborto em caso de estupro até os três primeiros meses de gestação. Com o B.O. em mãos e a comprovação da gravidez, a mulher pode exigir seu direito ao abortamento gratuito em qualquer hospital do SUS.
7.Após a denúncia, a vítima tem direito ao acompanhamento psicológico gratuito, através dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), delegacias ou fóruns.

Confira mais na edição 589 do jornal impresso 

Bruna Gomes

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