Opinião

Entre os “comedores de camarão”

Jacutinga deixou a Terra Indígena Nambikwara para passar um ano e pouco à frente da Administração Regional da Fundação Nacional do Índio, na cidade de Vilhena, Rondônia. Uma cidadezinha de pele branca, sotaque sulista, casas de madeira, ruas sem calçamento, discoteca “Crocodillus Disc”, cercada pela imensidão da floresta Amazônica. Na estiagem, o areão vermelho misturava-se ao azul do céu. 1988 estava novo em folha.

Na bagagem da ave, de asa caída, os ecos dos vãos apelos de sua amada que decidiu por continuar no Jardim de Éden (não o da tradição judaico-cristã descrito no Livro do Gênesis, mas o da Nambikwara). Dolorida, mas sem pestanejar, a carioca da gema optou pela aldeia, embebida pelo “estado de natureza” em que viviam os Nambikwara do Cerrado, tal qual o “bom selvagem” celebrado por Rousseau, em que a ideia de simplicidade e felicidade se opunha à do mundo ocidental. Havia descoberto que a civilidade residia naquela aldeia, onde permaneceu com o filho Theo, a piauiense Josi, que passou a integrar a família, Zenilde, Atendente de Enfermagem, e os Nambikwara da aldeia Sapezal que a adotaram. Depois chegou Gil, Técnico Agrícola, do povo Fulni-ô, que guarda a sete chaves os segredos do Ouricuri. Em seguida, chegou o casal Mara Vanessa, Indigenista, e Zé Neto, integrante do Clube da Esquina, compositor da canção “Brasil Século V/Toré”, em parceria com Lô Borges. Ouça a doce voz da mineira Titane em um dos trechos dessa composição:

Xacriabá

Krenak

Machacali

Tupiniquim e pataxó

Tuxá pankararé

Pankararé e guarani

Botoque dos poxixá

Machacali e kaimbé

Toré dos kiriri

Tupiniquim e pataxó

Tuxá pankararé

Pankararé e guarani

Botoque dos poxixá.

Jacutinga deixou a cidade de Vilhena com as duas asas caídas. Nesse estado, retornou à Mata Atlântica. Dessa vez, ao mar de águas mornas do Nordeste. Com sua amada, filho, Josi e Wilma, sua sogra, chegou à Baía da Traição para morar em uma pequena casa de estilo pescador, a poucos metros da praia. Da Terra Indígena Nambikwara para a Terra Indígena Potiguara, litoral da Paraíba, municípios de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto. Reencontrou Marcos Potiguara, dos tempos de Rondônia; Arlene Lamas, Indigenista, dos tempos de Vilhena. Na nova paragem, a ave, ao lado de seu par e da sabedoria milenar dos guerreiros de Acajutibiró, iniciou estudos sobre etnografia Potiguara para adentrar ao universo da cultura material e imaterial e da flora e do mineral utilizados como recurso utilitário e medicinal.

Dos séculos XVI ao XX, o povo guerreiro, “comedor de camarão”, não teve trégua. Sofreu violentamente diante à colonização europeia – portugueses, franceses e holandeses. Na contemporaneidade, não ficou incólume. As constantes ameaças de invasão em seus territórios de ocupação milenar ocasionaram conflitos de toda ordem.

Entre os poucos objetos na bagagem de Jacutinga, não faltaram livros sobre os Potiguara: “Tratado descritivo do Brasil em 1587”, de Gabriel Soares de Sousa, “Pedro Poty, bravo índio paraibano opta pelo Brasil holandês”, de José Fernandes de Lima, “Pindorama conquistada”, de Francisco Moonen, “Baía da Traição, a Acajutibiró dos Potiguara”, de Maria das Neves Padilha do Prado Freire, dentre outras preciosidades garimpadas nos sebos do Rio. Na da carioca da gema, seu acervo imagético Nambikwara.

Ainda que distante de seu habitat natural, o dia a dia de Jacutinga junto aos Potiguara estimulou sua muda de penas, importante ciclo de vida das aves, em geral, que lhe devolveu robustez. Em Baía da Traição se deixou impressionar afetivamente pelas manifestações da vida potiguar. Conheceu o interior dos manguezais. Os arrecifes, a formação rochosa ora submersa, ora à flor da água, por onde costumava caminhar e examinar minuciosamente aquela estranha passarela. Encantou-se com os movimentos da maré. A preamar. A baixa-mar, quando a Lua Nova permite que uma incalculável quantidade de estrelas se espelhem na areia lisinha da praia e deem a sensação de estar a caminhar sob um céu estrelado. A costa litorânea, formada por falésias, em que o relevo a apresentar escarpamentos de areias multicoloridas esculpidos pela ação da erosão marinha. Águas-vivas fluorescentes, com seus corpos transparentes, a bailar na escuridão do mar e da noite. O manguezal, ecossistema costeiro oriundo do encontro de águas de rio com as do mar, a coletar agigantados caranguejos em seu solo lodoso e malcheiroso. O vozeirão do mar desembocando em sua casa.

Jacutinga também se deparou com a pesca artesanal de camarão realizada com mangote, tarrafa e rede de emalhar; com a espera incerta ao fim do dia, na areia da praia, das mães e mulheres de pescadores de lagosta, diante à arriscada técnica artesanal que não raro causava embolia pulmonar provocando a morte de seus jovens rapazes. Até tremor de terra em meio a madrugada a lhe causar tonturas.

De 1988 a 1989, Jacutinga e sua família reuniram inimagináveis experiências. Desse tempo, nasceu “Potiguara: cultura material” (1989), publicado pela Secretaria de Educação e Cultura da Paraíba, dedicado a Severino Fernandes, um guerreiro Potiguara que lutou na autodemarcação de seu território.

Anna Maria Ribeiro Costa

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Anna é doutora em História, etnógrafa e filatelista e semanalmente escreve a coluna Terra Brasilis no Circuito Mato Grosso.

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