O Judiciário brasileiro terá que lidar com questões eleitorais e mostrar desenvoltura para não ser rechaçado pela sociedade, num momento de forte conflito político. Este processo eleitoral é o primeiro no país em que tanta corrupção está escancarada, com vários agentes públicos implicados que de novo tentam se manter em posições que, segundo investigações, usaram para adquirir benefícios próprios em troca de dinheiro e favores espúrios.
Em Mato Grosso, são 74 impugnações recomendadas contra registros de candidaturas por coligações. A Procuradoria Geral Eleitoral (PRE) e o Ministério Público Eleitoral (MPE) são os órgãos fiscalizadores que mais pediram para barrar a concorrência de políticos fichas-suja, alguns por crimes graves que geraram condenação em reclusão, como o peculato que é a apropriação do dinheiro público e o enriquecimento ilícito.
Na lista dos órgãos aparece o atual governador Pedro Taques (PSDB), que concorre à reeleição e teve o registro impugnado por suposta fraude em ata de chapa nas eleições de 2010. O Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso (TRE) julgou o caso no fim de julho, com efeito de cassação do mandato do senador José Medeiros (Podemos) como concorrente como primeiro suplente de Taques ao Senado. A decisão foi suspensa em meados deste mês pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que entendeu que não houve tempo para a defesa do titular do cargo. Mas, na impugnação do registro contra Taques, em decisão monocrática, o tribunal diz desconhecer qualquer liminar que suspenda sua decisão.
O deputado Gilmar Fabris (PSD) estava preso menos um ano atrás por efeito da delação do ex-governador Silval Barbosa e também quer concorrer ao cargo de deputado. No ano passado, ele ficou detido no Centro de Custódia da Capital (CCC) entre 15 de setembro e 25 de outubro depois de fugir de uma batida da Polícia Federal, na madrugada de deflagração da Operação Malebolge.
Romoaldo Júnior (MDB) também é um parlamentar candidato à reeleição com condenação em seu currículo. O crime ocorreu durante seu mandato de prefeito em Alta Floresta. O Tribunal de Contas da União (TCU) recusou duas prestações de contas do deputado por irregularidades em contratação da prefeitura. Houve vícios na compra de um veículo para uso itinerante como unidade de saúde com dinheiro do Fundo Nacional da Saúde (FNS).
O candidato a vice-governador Otaviano Pivetta (PDT) também teve contas de gestão na Prefeitura de Lucas do Rio Verde rejeitadas pelo TCU. Seu nome aparece em lista de gestores que fizeram mau uso do dinheiro, documento que o em condição de inelegibilidade pelo TRE-MT nas eleições 2016. Ele é citado na Operação Sanguessuga, de 2006, que investigou o desvio de dinheiro público por meio de compra de ambulâncias.
Lentidão da Justiça tende a favorecer novos mandatos
Em tese, todos esses candidatos se encaixariam nas regras da Lei da Ficha Limpa que veta direitos políticos a pessoas com condenação por irregularidades em gestões anteriores, independentemente do cargo ocupado. Mas a norma tem grandes chances de continuar somente no papel.
O trâmite lento dos processos pode se alongar ao longo do tempo de mandato daqueles que conseguirem reeleição em outubro próximo. Exemplo disso é o caso que serviu de base para a impugnação da chapa de 2010 de Pedro Taques, que culminou com a quase perda do mandato do senador José Medeiros. Medeiros chegou a deixar o Senado em agosto, voltando após uma liminar.
Os efeitos da Lei Complementar 135, de 2010 (Lei da Ficha Limpa) são amplos e tornam inelegível por oito anos o governador ou prefeito que violar a Constituição Estadual e a Lei Orgânica do Município; condenados pela Justiça Eleitoral em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político; condenados pelos crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público, contra o patrimônio privado; crimes eleitorais, para os quais a lei determine a pena de prisão; de lavagem ou ocultação de bens, e reprovação de contas públicas.
Ao todo, são tipificados direitos e valores; de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; de redução à condição análoga à de escravo; contra a vida e a dignidade sexual; e delitos praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando.
A Lei da Ficha Limpa ainda torna inelegíveis os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure improbidade administrativa, condenados por corrupção eleitoral, compra de votos, doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma.
Nessas eleições, a Justiça Eleitoral terá até 17 de setembro para julgar os pedidos de registro de campanha, mas esse prazo também deve ficar só no papel. O próprio TRE-MT avalia ser impossível concluir o trâmite na esfera estadual dos atuais 528 pedidos. Além disso, se houver indeferimento pelo colegiado, os requerentes podem recorrer da decisão na esfera federal, e o prazo razoável prescrito pela Justiça é de um ano de trâmite, mas a teoria novamente se enrosca na prática judicial.
O contraditório direito ao contraditório
“Durante esse trâmite, o candidato não pode ter seu direito barrado por ferir prerrogativa constitucional de direito ao contraditório e de defesa. Ele pode participar do processo e eventual cargo, para o qual foi eleito, sub judice”, explica o professor de direito na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Antônio Veloso Peleja Junior.
Veloso afirma que a Lei da Ficha Limpa abriu caminho para a suspensão dos direitos políticos sem a necessidade de trânsito em julgado dos processos, desde que o caso tenha sido julgado por um colegiado de juízes em segunda instância. Mas essa norma se choca com as medidas já previstas na Constituição Federal (ampla defesa e contraditório, por exemplo), deixando brecha para a suspensão de decisões desfavoráveis aos gestores.
“O artigo 1º, inciso 1 e as alíneas dizem que são inelegíveis os que forem condenados em trânsito em julgado ou por um colegiado em segunda instância”, pontua.
O julgamento da possível candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é um exemplo da confusão acerca da aplicação plena da Lei da Ficha Limpa. O caso será julgado no Supremo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso.
A ocupação política da Justiça
A ocupação política do Judiciário no debate público pode contaminar as decisões sobre políticos, com efeito do posicionamento do TSE nas esferas inferiores. O analista político Onofre Ribeiro usa a disputa em torno da candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como termômetro para avaliar a situação.
“As decisões regionais estão muito contaminadas pelas decisões federais. A questão [da candidatura] do Lula está contaminando as eleições de cima abaixo. A pergunta é: como o TSE vai reagir? Enquanto não for resolvido lá, aqui a Justiça vai ficar em cima do muro, não fica à vontade para tomar decisões. Se liberam o Lula [para disputar as eleições], por jurisprudência, muda tudo no Estado”, comenta.
O impacto que a decisão do TSE deve causar no país se deve à transferência de debates, em tese, com prevalência de discussão no Poder Legislativo, para o âmbito jurídico, uma mistura que coloca em xeque o país. “O maior protagonista jurídico no país é o Judiciário. As maiores decisões que o país tomou nos últimos 15 anos foram tomadas pelo Judiciário, e nessas eleições ele está mais político que o Legislativo”.
O analista faz referência aos debates sobre o uso de células-tronco, nascimento de fetos acéfalos e o aborto, que voltou a ser discutido neste ano, todos com estabelecimento de medidas por meio de decisões do STF (Supremo Tribunal Federal). Em miúdos, a Justiça brasileira acumula papéis que deveriam ser exercidos em esferas separadas. São debates classicamente políticos cujos consensos deveriam se transformar neste formato ao Judiciário para fiscalização.
“Desde o mensalão, quando ficou claro que o governo manobrava o Congresso, o Judiciário passou a acumular papéis e agora terá que lidar com suas próprias contradições. Eles estão errando do mesmo modo como o Congresso erra, mas a estrutura do Congresso é de discussão mesmo e a do Judiciário é de fiscalizar o cumprimento de leis”.
Os partidos e coligações não foram os únicos a impugnar o registro de candidaturas de futuros representantes. O Ministério Público Eleitoral também abriu processos para barrar inscrições daqueles que não devem se (re)eleger. Só a entidade, por meio da Procuradoria Regional Eleitoral em Mato Grosso, impugnou 68 candidaturas.
O número é recorde se comparado com eleições gerais anteriores. Em 2014, foram 41 impugnações. Já em 2010, o número de contestações chegou a 32. Agora, os juízes eleitorais terão até 17 de setembro para julgar todos estes processos na Justiça Eleitoral.
A impugnação eleitoral ao registro de candidatura segue o mesmo rito que um processo judicial comum. "Como a democracia defende a ampla defesa e o contraditório e o devido processo legal, um processo de [impugnação] de registro deve tramitar igual para todos", explica Daniel Taurines.
Taurines é analista judiciário no Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso (TER-MT). Por conta das eleições deste ano, ele está atuando como coordenador interno e auditoria. Cabe ao contador e advogado (por formação) analisar os gastos de campanha do candidato e do partido e emitir um parecer (favorável ou não) ao juiz, como fazem os auditores dos Tribunais de Contas.
Segundo o analista judiciário, o juiz eleitoral é o único que pode legitimar se um candidato está apto ou não a concorrer no pleito.
Ele explica que, após a publicação de uma lista dos políticos que receberam um processo de impugnação, é dado um prazo para as coligações, partidos ou políticos apresentarem a sua defesa perante a Justiça Eleitoral.
Enquanto o julgamento não ocorre e uma sentença é proferida, o político continua (na condição) de candidato e pode se apresentar como tal. O caso mais emblemático e atual é o do ex-presidente Lula que, mesmo condenado por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá, se inscreveu para concorrer à Presidência pelo Partido dos Trabalhadores (PT).
Por causa da condenação, Lula estaria enquadrado no caso de inelegibilidade prevista na Lei da Ficha Limpa. A candidatura do petista foi contestada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) com base nesse argumento.
No entanto, o "poder de minerva" está com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – pressionado por setores da classe política e sociedade civil – para decidir se Lula é apto ou não para concorrer nas eleições.
O mesmo ocorre para os demais candidatos fichas-suja. Taurines comenta que se ninguém contesta a candidatura na Justiça Eleitoral os candidatos podem concorrer normalmente e até ser eleitos – mesmo aqueles que têm uma condenação por crimes contra a administração pública ou foram envolvidos com trabalho escravo, por exemplo. "Se ele registra a candidatura e ninguém o impugna, o juiz pode declará-lo apto para disputar a eleição", comenta.
Taurines ressalta que a condição de ficha suja ou limpa é tratada no processo de impugnação. É quando a coisa ganha contornos práticos e a legislação é aplicada. Mas, como a Constituição Federal garante que todos têm o direito de se candidatar, o processo da impugnação deve tramitar de forma igual para todos.
Assim, dependendo da decisão (apto ou não para concorrer às eleições), a legislação brasileira também garante a possibilidade de recurso. Neste caso, a ação sobe para o TSE por se tratar de eleições gerais (quando são definidos os cargos de presidente e governadores).
Aqui acontece o mesmo lance na primeira instância – enquanto o recurso não é julgado e a ação não transita em julgado, o candidato pode concorrer normalmente nas eleições.
Caso o recurso não seja julgado a tempo do término das eleições e até mesmo o candidato conseguir se eleger pelo voto, o seu registro de candidatura pode ser cassado e a sua conquista anulada. Isto acontece quando o TSE nega um eventual recurso contra o cancelamento da sua inscrição. Assim, o próximo mais votado assume a vaga ou uma nova eleição é feita (quando é para assumir o Poder Executivo).
Taurines comenta que, sozinha, a Justiça Eleitoral não é capaz de mudar o sistema. "Sozinha, não consegue combater o caixa 2 e sozinha não consegue mudar a representação legislativa", comenta. Segundo ele, o principal objetivo da Justiça Eleitoral é dar transparência do processo para que a sociedade tome a melhor decisão e, consequentemente, escolha o melhor representante.
Quem fiscaliza o patrimônio dos políticos
Ninguém. Os bens e propriedades milionárias de muitos políticos não são fiscalizados ou passam por uma auditoria por nenhum órgão público.
O analista judiciário e coordenador de prestação de contas e auditoria de gastos de campanha do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso Daniel Taurines explica que a Justiça Eleitoral não tem o poder de investigar ou fiscalizar o patrimônio declarado dos candidatos. Com base na declaração do Imposto de Renda, os políticos somente cadastram seus bens e patrimônios. Contudo, não existem trabalhos para verificar se a lista dos patrimônios é completa ou fidedigna.
Ele ressalta ainda que o único papel da Justiça Eleitoral é de divulgar e entregar "essas informações à sociedade" para que ela própria faça o seu controle.
"Nós não somos um órgão da Receita Federal que faz um controle tributário. É para nós termos uma noção do patrimônio do candidato e, se ele usar dinheiro dele na campanha, se é verdade isso ou só uma simulação", explica.
A ideia é fazer com que os próprios eleitores tenham ciência dessas informações e as usem para pressionar os políticos de alguma forma a seu favor. "Então, é mais para acompanhamento patrimonial para ver se o que ele declarou é verdadeiro", comenta.
Um dos casos em que é o dever da sociedade usar a declaração patrimonial é em relação ao crescimento vertiginoso dos bens do político no período em que ele ocupou um cargo público, por exemplo.
Caso este crescimento envolva enriquecimento ilícito e à custa dos cofres públicos, caberá aos tribunais de contas e ao Ministério Público Estadual ou Federal fazer a denúncia.
Segundo Taurines, a declaração de patrimônio é uma obrigação acessória ao registro. Caso haja algum erro ou esteja incompleto, o candidato será notificado por um juiz – o único capaz de julgar e analisar o registro de candidatura – para corrigi-lo. Contudo, seria apenas uma medida de correção e não implicaria numa cassação no registro de candidatura, por exemplo.
Questionado se a Justiça Eleitoral tem como saber se essa declaração é completa e contempla todos os bens, o analista diz que cabe à sociedade e políticos concorrentes questionarem e fazerem a denúncia junto ao Ministério Público Federal ou Eleitoral.
"Se omitir informações, está omitindo para a sociedade. Nós não vamos investigar o patrimônio dele. A gente divulga e entrega essas informações para a sociedade", disse.
Os valores de alguns bens declarados, como os imóveis, podem divergir ou ser irreais comparados ao valor de mercado. É o que se chama de valor venal. Esta é uma medida estabelecida pelo poder público para parâmetros tributários e que pode diferir do valor de mercado pelo qual é vendido o bem.
Por fim, a declaração de patrimônio é cruzada com a prestação de contas dos gastos dos partidos e coligações na campanha eleitoral. Após o término das eleições, as siglas partidárias deverão informar os gastos até 6 de novembro.