“Nossos jogadores eram românticos com a bola no pé, mas na conduta, absolutamente omissos”, diz Sócrates, no livro ao qual o UOL Esporte teve acesso.
O trecho faz parte de um capítulo em que Sócrates discute o impacto do movimento estudantil de 1968 no futebol brasileiro. Nele, o ex-jogador, morto em 2011 em decorrência de uma cirrose hepática causada pelo alcoolismo, fala da influência de Daniel Cohn-Bendit, um dos líderes franceses do levante popular, em sua vida.
Sócrates defende que o futebol brasileiro não poderia passar à margem do que acontecia em todo o mundo, especialmente porque o próprio país estava em “uma situação de guerra civil em busca da derrocada do regime militar que nos sufocava”. Em seu texto, ele reclama que poucos no esporte apoiaram o processo de mudanças, e por isso acabaram “expostos a regimes tacanhas e reacionários”.
O exemplo positivo citado por Sócrates é João Saldanha, comunista convicto que treinava a seleção nacional até 1969, quando deixou o comando técnico por uma divergência com o então presidente da República, Emilio Médici. “Imaginem se no momento de sua derrubada seus comandados tivessem reagido e afrontado a decisão que veio de cima? Ou mesmo se um único atleta como Pelé houvesse se manifestado de forma clara contra todos os desmandos que atacavam a nossa juventude?”, escreve Sócrates.
A passagem é só uma das várias narradas por Sócrates, que abre discussões sobre a preparação dos jogadores e dirigentes, passa pelo futebol feminino e esbarra em vários momentos de sua vida, sem deixar que o livro se torne uma autobiografia. O material hoje está nas mãos de Katia Bagnarelli, viúva do ex-jogador que ainda tenta viabilizar a publicação da obra.
Além de reunir e revisar o texto, ela também procurou dois nomes de peso para escrever o prefácio do livro: o ex-jogador holandês Johan Cruyiff e o próprio Daniel Cohn-Bendit, ambos referências na formação de Sócrates. O ídolo corintiano ainda conta diversos causos de sua carreira de jogador, lembrando desde a democracia corintiana até a passagem malfadada dele pelo Flamengo, passando pelos bons e maus momentos de seleção brasileira.
Nos capítulos que tratam de sua relação com a camisa amarela, Sócrates é só elogios a nomes como Telê Santana e Zico, mas critica duramente a concentração e a rotina dos atletas. Em um dos capítulos, ele também reflete sobre o impacto que a mídia tinha sobre os jogadores.
“Isso muitas vezes provoca reações sobre o ego das pessoas que nem mesmo elas se dão conta, produzindo certa euforia que os pode levar a acreditar que realmente estão próximos de se tornarem deuses. Aí, o espírito coletivo se esvai, pois para a manutenção daquela sensação é necessário que o mesmo estímulo se faça novamente presente. Tipo: vou fazer o gol porque assim os repórteres irão me procurar mais e mais”, disse Sócrates.
Em 1982, por exemplo, ele avalia que um de seus colegas pode ter sido atrapalhado por esse contexto.
“Aconteceu – não sei se exatamente por causa disso, mas não tenho dúvidas que a influência dessas emoções interferiu decisivamente – um fato de fundamental importância naquela campanha do Mundial de 1982 e que poderia ter provocado um final muito diferente do que ocorreu”, escreveu Sócrates.
O capitão daquele time, eliminado de forma dramática pela Itália na segunda fase, narra justamente o momento seguinte ao gol de Falcão, que empatou o jogo decisivo por 2 a 2. O empate era favorável ao Brasil, mas uma virada naquele instante seria fundamental diante de uma Itália que já tinha dado mostras de sua força no contra-ataque.
“Roubamos uma bola no meio de campo e partimos para o contra-ataque com dois jogadores contra apenas um do adversário. Um colega, que estava com a bola dominada, em vez de tocar para mim que corria ao seu lado pronto para recebê-la, preferiu o drible, o que propiciou a interrupção da jogada por parte do líbero Scirea”, disse Sócrates.
O autor não cita nominalmente quem seria o colega em questão. O VT do jogo em questão, porém, mostra que um minuto depois do gol de Falcão, Éder toma a bola de um zagueiro e tenta cortar para a esquerda em vez de lançar Sócrates, que entrava sozinho. Mais tarde, Paolo Rossi faria o terceiro e afundaria o sonho do título daquela geração.
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