Cidades

Em 30 anos de luta, Rede de Saúde Mental demora em ser implantada

Na semana em que se comemora o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, celebrado na última quinta-feira (18), ainda paira uma dúvida: quem é responsável por atender os casos de surtos, situações de urgência, se manicômios estão sendo extintos?

Um fato ocorrido no início deste mês ilustra bem a falta de informação de como agir em situações que envolvem deficientes mentais. No dia 8, uma mulher com distúrbio foi encontrada dormindo nua nos corredores de uma concessionária de veículos de Cuiabá.

A administradora Jussiane Perotto, da empresa Extra Caminhões, relata que ficou comovida com a situação e providenciou uma roupa para a mulher vestir. Porém, quando contatou o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência foi informada que o Samu não atendia este tipo de ocorrência.  

Após ligar para a Prefeitura de Cuiabá, ela foi orientada a ligar novamente para o Samu, que finalmente fez o encaminhamento da paciente para a Policlínica do Coxipó. “Os funcionários ficaram chocados com o descaso de como as pessoas tratam umas às outras. Não foi nenhum olhar de recriminação, mas de piedade”, afirmou Perotto.

A paciente encontrada nua tinha fugido da policlínica durante a madrugada. Quando era atendida pela equipe médica, ela retirou o soro e saiu correndo, conforme explicou o diretor da policlínica, Alessandro de Brito. Os funcionários ainda acionaram a PM e uma ambulância para tentar encontrar a mulher, mas sem sucesso.  

Os problemas de fugas das unidades de saúde são uma constante. A paciente Luciana Lima*, 53, convive com a esquizofrenia e bipolaridade há mais de 30 anos, conforme o filho Pedro Lima*, de 37. Há três anos, Luciana fugiu e foi encontrada em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, meses depois. 

“Ficamos uns 30 dias sem saber dela, indo no IML para buscar informações, colocando anúncios na TV, até que ela mesma se achou lá”, relatou Pedro. “Ela entrou numa agência bancária e queria receber, mas não tinha cartão nem documentos. Fez o maior escândalo. Então vieram os policiais para contê-la e nós ficamos sabendo”, completou.

Ainda segundo Pedro, o tratamento não é continuado e sua mãe tem surto sempre que reduzem sua medicação. Ele explica que quando a mãe é tratada no Adauto Botelho, ela sai de lá estabilizada, mas a paciente então apresenta uma “queixa clínica” aos médicos dos CAPS, que reduzem os remédios.

Quando isso acontece, segundo Pedro, sua mãe volta a ter os surtos e começa a achar que não precisa mais tomar a medicação. “Depois que os surtos voltam, ela acha que não precisa mais tomar os medicamentos. Quando chega a esse ponto, não tem mais jeito, tem que voltar para o hospital”, relatou.

Samu é o único que pode retirar paciente da rua

A coordenadora de Saúde Mental do município de Cuiabá, Darci Silva Bezerra, ratifica que apenas o Samu é autorizado a retirar uma pessoa com transtorno mental da rua, mesmo sem o seu consentimento. O município ainda dispõe do “Consultório na Rua”, que faz um atendimento multidisciplinar, porém não pode retirar uma pessoa à força.

“Às vezes quando o paciente é morador de rua, o Samu não quer atender. Neste caso, nós temos a cobertura do Consultório na Rua, mas não para tirar o morador da rua compulsoriamente. Nem a polícia pode fazer isso, o Samu é o único serviço que pode retirar do local”, esclareceu.

Segundo Darci, após recolher o paciente da rua, o Samu leva-o para uma policlínica ou Unidade de Pronto Atendimento (UPA) para receber os primeiros serviços. Ela, no entanto, reconhece que a estrutura está longe do ideal e que os hospitais dispõem de apenas um enfermeiro e uma assistente social para atender esse público.

Apenas a UPA Morada do Ouro tem uma psicóloga, que trabalha no período noturno. Por outro lado, Darci garante que os profissionais destes locais estão “minimamente preparados” para direcionar o paciente para um atendimento especializado e que uma comissão está elaborando um “mecanismo” para garantir o suporte a esses trabalhadores.

“Temos uma proposta para termos um psiquiatra ou um clinico com expertise na saúde mental, que possa dar esse suporte nessas unidades, quando essas equipes do Pronto Atendimento sentirem dificuldade no manejo”, informou.

Apenas dois CAPS de Cuiabá atendem transtornos mentais

Somente os CAPS do Bairro Jardim Paulista e do CPA 4 atendem pacientes com transtornos mentais. Darci Silva Bezerra, coordenadora de Saúde Mental de Cuiabá, avalia que a estrutura ainda é deficitária, mas adianta que a Prefeitura de Cuiabá pretende ampliar as vagas, com o CAPS AD, no bairro Jardim Europa.

Este CAPS que atende jovens de até 18 anos com problemas relacionados a álcool e drogas, também passará a atender a demanda de problemas mentais. De acordo com a coordenadora, até o mês de agosto os trabalhadores da unidade deverão estar capacitados para atender à dupla demanda.

“Nós vimos que o CAPS não está conseguindo atender à demanda infanto-juvenil, então resolvemos elaborar essa proposta de ampliação e apresentamos para a secretária Elizeth de Araújo uma preliminar. Ela achou pertinente e estamos trabalhando para entregar isso até o mês de julho”, explicou.

Ainda segundo Darci, a Prefeitura de Cuiabá está com o edital aberto para a construção de um novo CAPS AD no município, que deverá ficar pronto em até dois anos. Esta unidade seria construída com recurso de R$ 400 mil, que estavam parados no cofre municipal e teria que ser devolvido ao Ministério da Saúde.

“A estrutura que temos não é suficiente, o ideal seria que a gente tivesse pelo menos um CAPS 24 horas para atendimento de casos de transtornos mentais e um CAPS AD 24 horas. Seria um serviço inovador em Mato Grosso, que não tem nenhuma unidade 24 horas e que funcionam apenas em horário comercial”, argumentou Darci.

Quais são os passos do tratamento

A porta de entrada para tratar de problemas mentais no Sistema Único de Saúde (SUS) são os Postos de Saúde da Família (PSFs). “Quando um parente identificar alguma alteração de humor, desordenamento do pensamento, problemas de inquietações e falta de sono, eles podem procurar o médico do PSF e explicar o problema, que ele saberá encaminhar o paciente para o serviço adequado para cada caso”, pontou Darci Bezerra.

A mesma atitude deve ser tomada caso seja identificada alguma ideação suicida ou pensamentos do tipo. “O médico da atenção básica faz o atendimento e encaminha para o ambulatório. Quando é o caso mais grave, o médico poderá encaminhar diretamente para o CAPS. Essas são as portas de entrada que a gente oferece”, elucidou.

Há ainda a possibilidade de o paciente ser levado para um hospital pelo Samu. Quando isso acontece, o médico vai avaliar e medicar o paciente, e caso seja necessário ele será internado na unidade hospitalar para aguardar uma vaga no Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho.

Se o paciente reagir positivamente aos medicamentos e alcançar uma estabilização mínima, ele é encaminhado a um CAPS para continuar recebendo acompanhamento médico e posteriormente enviado para uma policlínica ou UPA mais próxima da residência ou ponto de referência de moradia do paciente. 

Não é possível instalar CAPS em todas as cidades

A coordenadora de Ações Programáticas Estratégicas da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso (SES-MT), Aline Régia Ferreira Ribeiro, informou ao Circuito Mato Grosso que a média de população nos municípios mato-grossenses é de 5 a 10 mil habitantes, não levando em conta os principais polos como Cuiabá, Rondonópolis, Tangará da Serra, Sinop e outras cidades.

Como para instalar um CAPS I no município, ele deveria ter uma população superior a 20 mil habitantes, então o Estado e municípios estão trabalhando com a estratégia de CAPS regionais. “O município de São Felix do Araguaia, por exemplo, atende toda a região do Norte Araguaia, porque são municípios pequenos e distantes um do outro”, explicou Aline Ribeiro.

Ainda de acordo com Aline, o papel do Estado se resume em fomentar a implantação de novos serviços, como CAPS, leitos no Hospital Geral, Unidades de Acolhimento e Residências Terapêuticas. Além disso, o Estado é responsável pela capacitação profissional, levar discussões para deliberações nas comissões intergestoras, comissão de saúde e outros órgãos.

“A gente faz trabalho de assessoria e orientação, considerando o perfil daquela região, avaliando o que ela precisa de equipamento de saúde mental para atender a sua população, para que ninguém precise sair de lá de Água Boa e vir para Cuiabá. Nós também cofinanciamos, temos uma portaria que passa os recursos para os CAPS”, disse Aline.   

Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho passa por reformas

“Hoje não temos outro caminho. Nós temos a legislação e temos que nos adequar a ela”, afirma o diretor do Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho, João Santana Botelho, sobre a Lei 10.216/2001, que trata da Reforma Psiquiátrica Brasileira.  Botelho, entretanto, acredita que este processo deveria ocorrer de forma mais célere.

“Eu não vejo um avanço naquilo que a gente espera, por que a lei é de 2001, tem 16 anos de existência. Então já deveríamos ter construído essa rede para que essa nova política, que de nova não tem muita coisa, para ser implementada. Acredito que poderíamos avançar mais e numa velocidade maior”, afirmou Botelho.

Enquanto isso não ocorre, Botelho explica que a unidade psiquiátrica está passando por reformas no prédio que foi construído na década de 1950. Até o momento a enfermaria feminina foi reformada e a próxima será a masculina. Além disso, um espaço está sendo preparado para ter arte-terapia e um ambiente para acolhimento para pacientes com casos mais severos.

Ainda segundo Botelho, o hospital psiquiátrico tem uma história que deve ser preservada, mas que seu futuro após a implementação da rede é incerto.  No momento ainda existem 70 leitos no hospital e estão sendo fechados “paulatinamente” leito por leito. “Cada leito que for abrindo no Hospital Regional vai fechando um do Adauto. Essa é a esperança de que um dia seja implantado na totalidade”, afirmou.

A Luta Antimanicomial

A luta antimanicomial teve início em 1987, no dia 18 de maio, com um Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental, realizado em Bauru (SP). Cansados do tratamento desumano e cruel dado a usuários do sistema de saúde mental, os trabalhadores organizaram o primeiro manifesto público a favor da extinção dos manicômios.

Médicos, psicólogos, pacientes e seus familiares engajados nessa luta defendem que pessoas com transtorno mental têm direito à vida independente de inclusão na comunidade, a avaliação e cuidado multidisciplinar. Por isso, as mobilizações nessa data também reivindicam o fechamento dos manicômios, a criação de serviços substitutivo e novas legislações, a implantação de um sistema de saúde mental na rede pública e a defesa da Reforma Psiquiátrica Brasileira.

 *O nome dos personagens foram modificados a pedido do entrevistado, para garantir a continuidade no tratamento da paciente.

Felipe Leonel

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