Opinião

Ele Sócrates; eu Platão

Homenagem ao Professor Alexandre Tavoloni Jr.[1]

 


[1]Agora trazido a público, no ensejo deste 15 de outubro de 2018, Dia dos Professores, o texto foi escrito em março de 2017, por ocasião da comemoração de quarenta anos de docência na UFMT do homenageado.

 

Permita-me, querido Professor, manifestar o peso que sinto em dizer, nesta homenagem, neste pequeno relato– não sem cometimento –, algo sobre o senhor. 

A dificuldade naturalmente assoma não só porque devo falar de um amigo, de alguém muito querido, mas também de um Mestre. 

Falo, pois, numa condição assimétrica.

Falo de um Mestre, a um Mestre, ao meu Mestre.

Falo em meio a uma assimetria. 

Falo enquanto aluno – falo já enquanto discípulo.

Numa assimetria curiosamente marcada pelo fato de que a autoridade do Mestre é confirmadapela afetuosidade do aluno que reconhece no Mestre uma autoridade tecida de afeto.

Falo de um Mestre que, há quarenta anos, se rende à autoridade dos seus alunos, mas que também, há quarenta anos, deles extrai afetuosamente sua autoridade.

Falo a um Mestre para quem a relação com os alunos é fundamental – para quem a suarelação com os seusalunos é o que importa acima de tudo. 

Falo – devo insistir – ao meu Mestre. 

Ele Sócrates; eu Platão…

***

Há muito tempo ansiava por este momento. Momento em que posso, de algum modo, prestar meu testemunho sobre o meu Mestre, sobre aquele que constituiu para mim o meu ponto de partidapara o mundo do Direito, da Filosofia e das Letras de maneira geral.

Curiosamente, a minha primeira aula no Curso de Direito da Faculdade de Direito da UFMT foi ministrada pelo nosso querido Professor Alexandre Tavoloni Jr., para alguns simplesmente Professor Tavoloni, para outros simplesmente “Tavovô”. Este fato marcaria para sempre a minha trajetória acadêmica. Posso relembrar, como se fosse hoje, a sua letra no quadro destacando as principais obras que deveríamos utilizar como referência para a sua disciplina: Introdução ao Estudo do Direito. Impressionou-me, desde logo, o rostoe a voz, a seriedade do olhar de quem ensinae a impostação da palavra que se dirige com carinho àquele que aprende, com todas as suas particularidades pessoais: o tom grave, aliviado por um sotaque intruso, provavelmente herdado de sua terra natal – penso, aqui, por exemplo, no seu jeito de falar o termo “teoria”, soando algo como “tchioria” –, e as frases sempre interrompidas graciosamente com um “ou seja”, num esforço ininterrupto de se fazer melhor compreensível aos alunos.

Entre tantas lições que me ensinou, uma das mais notáveis foi a de estimar o valor dos acasos. Se bem que a vida que se prolonga, que se distende para além dos seus instantes únicos e incomparáveis, tencione, de algum modo, vista de trás para frente, tornar-se uma biografia, reconduzir-se em destino, há algo nela – na vida – de fortuito que a engrandece. Há situações que escapam a um determinismo engessado das coisas e que, sujeitas a uma profusão de variâncias, concorrem elas mesmas para o acontecimento do inédito, do inesperado, do imprevisível. Posso dizer, portanto, que o encontro deste aluno, deste discípulo, com o seu Mestre, foi um evento fantástico. Não um acaso qualquer, mas aquilo que se pode chamar de um belo acaso, de um acaso extraordinário: uma verdadeira fortuna. Tenho certeza de que todos que puderam ter o privilégio de ter o nosso Tavovô como Mestre foram agraciados com uma mesma felicidade.

Levando em conta essa lição, hesitaria, pois, em dizer que o nosso homenageado estivesse fadado desde o princípio a se tornar Professor. Tornar-se Professor, parece-me, constituiu também, antes, um belo acaso que a vida lhe proporcionou. Enquanto belo acaso, a atividade de Professor pôde conservar para ele, nestes quarenta anos, algo sempre de extraordinário, sem cair na rotina, na mesmice, no hábito que desanima e desestimula. Enquanto fado, a vida é já um fardo.

Uma angústia de viver, uma ansiedade por existir enquanto há tempo, enquanto há vida – numa avidez em executar o carpe diem, por sua própria conta abreviado para carpe horam–, sempre impediu que o nosso Mestre simplesmente vivesse esta vida como um acontecimento insignificante. Suas memórias de meninice e de juventude, a mim confidenciadas várias vezes, descrevem desde sempre o seu lugar desajustado em meio a grupos monótonos, conservadores, dogmatizados, acomodados em suas posições, mesmo quando as mais subordinadas.

Proveniente de uma família modesta, nascido em Jaú e criado na pequena cidade de Dois Córregos, ambas no interior do Estado de São Paulo, o menino fazia jus ao nome que lhe fora adjudicado: Alexandre. Um acaso o remetia ao célebre imperador da Macedônia, Alexandre, o Grande. De elevada estatura, bonito, possuidor de variados dotes naturais, Alexandre se destacava nas atividades que empreendia, até mesmo nos esportes. Em fase de mocidade, também se revelava nos bailes um exímio dançarino. Tendo trabalhado na usina da cidade, logo acendeu a cargos de confiança, despontando também nos círculos sociais em razão de sua distinta inteligência. 

Alexandre, ao contrário do imperador, não teve, no entanto, a sorte de ter um preceptor em nível de um Aristóteles. Sua ânsia por conhecer, por ser alguém na vida, haveria, em todo caso, de conduzi-lo à Filosofia. Um autodidata, um verdadeiro diletante no campo filosófico, Alexandre, que, hoje, é Professor de Filosofia do Direito, e que buscou, de início, na Filosofia um modo de lidar com os problemas existenciais, em mais um outro destes belos acasos, atuou na rádio dirigindo um programa sugestivamente intitulado “Jovens em busca do saber”.

O Mestre que, há quarenta anos, nos ensina era, uns tantos anos antes desses quarenta, simplesmente um jovem em busca do saber. 

Não sendo filho de Filipe II, Alexandre, o Professor, haveria de fazer suas conquistas às custas do seu próprio esforço. Formou-se, assim, em Direito na Instituição Toledo de Ensino no ano de 1972. Já em 1974 tornava-se Procurador do Estado de Mato Grosso, tendo sido também aprovado em primeiro lugar no concurso da Magistratura da mesma entidade federativa e se recusado a assumir o cargo. Entre outras funções importantes, exerceu, no ano de 1987, a de Procurador Geral do Município de Cuiabá e a de Chefe da Procuradoria Regional do INCRA. Obteve, ainda, o título de Mestre em Direito pela PUC/RJ em 1979, além de ter cursado o Programa de Doutorado da PUC/SP, orientado uma vez por Tercio Sampaio Ferraz Jr. e outra por Willis Santiago Guerra Filho. Advogado destacado por sua atuação nas causas agrárias, Alexandre ajudou a fundar em Mato Grosso o Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, candidatando-se a senador no pleito de 1990. Desde 1977, quando ingressava nos quadros da Faculdade de Direito da UFMT, Alexandre tem, ainda, sua vida marcada pela condição de Professor, comemorando, hoje, seus quarentas anos de docência. O reconhecimento uníssono das suas qualidades intelectuais, didáticas, pedagógicas e políticas alçou seu nome, por duas vezes, a candidato a reitor da UFMT, participando da sua primeira eleição direta, ocorrida em 1982, e, depois, da consulta democrática verificada em 1988. 

O fato é que Alexandre sempre se notabilizou em virtude do seu próprio mérito, que, agora, devo destacar, é expressamente reconhecido pelos seus alunos, os quais – gentil e agradecidamente – lhe oferecem esta singela homenagem. O nosso Alexandre também é grande! É nosso grande Professor!

Mas Alexandre, o Grande, o Professor, é também Tavoloni e também Júnior. Descendente de italianos, Alexandre faz jus também ao sobrenome. Tavola, palavra italiana que em português designa mesa, talvez represente bem a personalidade do nosso homenageado. A mesa, local onde se alimenta, mas em torno da qual também se conversa, simboliza de algum modo a sua predileção pela palavra oral, pelo debate, pelo discurso, que depende sempre da presença de pelo menos mais de um. Nosso Tavovô gosta muito de estar não só entre amigos mas também em face dos seus alunos. Professor que ensina para além das fronteiras às vezes tapadas da sala de aula, Tavoloni se põe à mesa com os seus alunos. Tavoloni falaaos seus alunos ao mesmo tempo que os ouve, numa relação em que o Mestre desperta simultaneamente a admiração, a curiosidade e a pergunta do seu aluno. Diante do Mestre, o aluno pode perguntar. A relação entre Mestre e aluno é mediada fundamentalmente pela palavra oral. Na voz do Mestre, toda palavra é palavra viva; porque viva, a palavra pode repercutir, propagar-se, a ponto de se fazer palavra ensinada – palavra que se compreende através dos ouvidos provocados pela voz do Mestre. 

Nosso querido Professor Alexandre Tavoloni é também Júnior. Palavra que, neste outro belo acaso, talvez esteja a consubstanciar, em seu nome, um índice da sua implacável juventude. Alexandre, o Professor, o Mestre, é um jovem. Um eterno “jovem em busca do saber”, sem dúvida! Mas também alguém que não se deixou abalar pelo transcurso do tempo. Se bem que os cabelos e a barba, já brancos, denunciem o inexorável do tempo que flui a despeito da vontade humana, Alexandre Tavoloni Júnior conserva no espírito uma juventude não aplacada pelas experiências da vida. Alexandre, o Jovem, é também um inconformado, um questionador, um não bitolado, provando, ainda, em suas veias, uma alta dose de rebeldia. Alexandre é jovem como os jovens! Talvez isso explique a sua alegria, a sua boa saúde, o seu apreço inigualável pela vida – a sua necessidade de estar com os seus alunos, que, numa mútua troca, também o fazem rejuvenescer enquanto crescem sem perder a própria juventude.

Querido Professor, saiba o quanto é importante para mim e para todos os seus alunos. Admiro-o, admiramo-lo, profundamente. É com muito júbilo que comemoramos juntos estes quarenta anos! Temos apenas de agradecê-lo pela paciência, pelo empenho e pela preocupação em nos ensinar, sem jamais desistir de nós. Por ser a nossa referência, o nosso ponto de apoio, o nosso ponto de partida em direção às mais delicadas questões que circundam ou atravessam a realidade jurídica. E mais: por nos mostrar que, para além do Direito, muitas outras realidades se sobrepõem: a realidade do poder, da força, do interesse… E que não há conhecimento do Direito que não se vincule ao conhecimento de tantas outras determinantes. 

Querido Professor, muito obrigado por nos ensinar.

Por ser o nosso Mestre.

Por ser o meu Mestre.

E – como o senhor disse certa feita –, em sendo Sócrates, por me confiar a tarefa de ser Platão.

Comemoremos a sua vida!

Viva!

 

Felipe Rodolfo de Carvalho

Professor universitário. Doutor em Direito. Membro do IHGMT. Advogado.

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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