Há poucos dias, João Rodrigues estava no Algarve, no sul de Portugal, esbanjando um bronzeado. Quem via pelo Instagram fotos de praia e churrasco poderia pensar em férias. O chef se divertia, sim; porém, viajar tem sido um dos pilares de seu trabalho. Pelo menos na última década.
Em 2016, ele fundou o Projecto Matéria, uma iniciativa sem fins lucrativos para valorizar produtos portugueses, promover a agricultura e a pesca sustentáveis e estreitar laços entre produtores e cozinheiros.
De lá para cá, o chef mapeou o país todo por intermédio de centenas de produtores. Encontrou açafrão, algas, bois raros, cactos, cogumelos e chás, assim como variedades de tradições portuguesas – dos peixes aos pães, passando por vinhos, doces, queijos e embutidos.
Como costuma repetir o grande curador da gastronomia portuguesa, “a maior riqueza de qualquer povo ou cultura são as pessoas”. Dito isso, o Projecto Matéria não cataloga ingredientes: mais do que isso, registra histórias: “É muito mais sobre quem faz, como faz, do que o produto em si”.
Rodrigues é lisboeta até dizer chega: nasceu, cresceu e estudou na capital portuguesa; em algum momento, chegou a pensar que seria biólogo marinho, mas virou cozinheiro – possivelmente, o mais admirado pelos colegas no país.
Em parte, a admiração vem do fato de ele ter chefiado o Feitoria, restaurante estrelado que marcou a década passada na cidade; em parte, por ter trocado o título pelo Canalha, uma tasca contemporânea e inspirada em receitas simples, afetivas, de tacho, para serem compartilhadas à mesa.
João Rodrigues mudou a cena gastronômica local. Por surfar e caçar, sempre conviveu com a matéria que hoje povoa seus pratos: “O produto é a base de qualquer cozinha, os produtores não são só alguém que produz algo, são agentes sociais fundamentais, eles ocupam o território que cada vez mais está desertificado porque os mais novos procuram os grandes centros. Ao defendermos o produtor, estamos a defender o país e a sua sustentabilidade.”
Mistura
Seu contato com os pescadores da Lota de Peniche é permanente, o que permite entender a sazonalidade dos pescados, assim como desvendar segredos que não estão nos livros de receitas. Suas frutas e legumes vêm no auge, direto de plantações orgânicas familiares. O porco pode ser saloio, bísaro ou alentejano, mas terá origem protegida. O chef trança sabores autóctones. Desde 2023, convida colegas a se emaranharem com ele.
O filhote do Projecto Matéria, tem apenas dois anos, mas não engatinha – corre solto. Rodrigues e sua mulher Vânia promovem encontros gastronômicos itinerantes pelas regiões portuguesas, colocam em pauta temas como a perda de saberes ancestrais e de práticas produtivas ligadas à cultura alimentar portuguesa. Entre campos, águas e mesas, juntam cozinheiros locais e estrangeiros, tecem receitas originais com produtos locais e sazonais.
Para o casal, Lisboa é um lugar especial, afinal, é a terra onde vivem com os quatro filhos, fazem festa de Santo Antônio (espécie de carnaval local) e mantêm o Canalha. De seus arredores, são embaixadores de produtores incríveis.
O melhor exemplo é o das ostras da Neptun Pearl. A 40 minutos da capital portuguesa, Célia Rodrigues cultiva as melhores ostras da Europa, graças ao controle meticuloso de salinidade e microclima.
O projeto focado na recuperação da ostra nativa portuguesa está em uma reserva ambiental no Estuário do Sado, em Setúbal, e é capaz de gerar 25 toneladas de conchas estriadas que, vira e mexe, põem pérolas – contudo, são mais valorizadas pela carne gorda, firme e saborosa.
Prova disso é que, além do Canalha, os moluscos estão em outros restaurantes, como o Cura, no hotel Ritz Four Seasons, o SEM, a Cervejaria Liberdade e o Sult, carioca instalado em Cascais.
Ancestral
Outro exemplo é a Ortodoxo, queijaria a meia horinha de Lisboa. Em Azeitão, Maria Arriaga e José Maria Abreu Lima mantêm uma produção artesanal baseada em leite cru de cabra e de vaca e métodos ancestrais – da ordenha ao amanhecer à cura natural.
Maria foi a Lyon, na França, aprimorar os conhecimentos queijeiros e conta com um time exclusivamente feminino para fabricar o Veludo de Cabra, queijo fresco e macio de casca delicada; o Grande do Viso, de pasta dura, com casca lavada em vinho tinto; o Azul da Arrábida, o primeiro queijo azul artesanal de Portugal; requeijão (ricota) fresco e o Coração de Burrata. O cuidado com cada detalhe conquistou mais chefs de renome e está aberto ao público, em visitas guiadas e degustações.
No que diz respeito ao poderio da mulherada, nada se compara a outra Maria. Com 23 anos, é a única pescadora do Arquipélago das Berlengas – e, ao que tudo indica, a única de percebes em Portugal. Tratase de uma das atividades mais arriscadas da pesca artesanal, visto que esses nobres crustáceos crescem em rochedos muitas vezes inacessíveis, batidos por ondas fortes.
A jovem, que não é filha de pescador, não pretende fazer outra coisa da vida. “É mesmo muito perigoso, mas também pesco outras coisas: polvo, dourada, caranguejo, e amo as sardinhas para comer fritas, mas não cozinho.”
A chef boliviana Marsia Taha, considerada a melhor chef mulher da América Latina no ano passado, estremeceu ao conhecê-la: “Ver a Maria ali, tão jovem, com um sorriso enorme e cheia de personalidade, não só me surpreendeu, como me deixou orgulhosa. Além de sua habilidade e agilidade na água, Maria me passou muita confiança, foi muito protetora com quem não estava acostumado a navegar em águas tão agitadas. Mudou a maneira de ver um trabalho como o da pesca, tão masculinizado.”
João Rodrigues e Vânia em nenhum momento dizem aos cozinheiros e jornalistas que os acompanham em experiências da Residência que eles vivenciarão algo inesquecível ou impressionante. Sem palavras, de mansinho, simplesmente garantem que cada visitante leve consigo um pouco da alma de Portugal.