Passar quatro horas entre a espera de um ônibus e o trajeto casa/trabalho (e vice-versa), é uma situação justa? Essa é a indagação da secretária do lar Rosana Martins, quando questionada sobre a qualidade do transporte público em Cuiabá. Rosana afirma que esta é a realidade que enfrenta durante seis dias da semana. Ela afirma que gasta, ao todo, quatro horas por dia em deslocamento, somente no transporte coletivo. Agora, a pergunta vai para você leitor. Essa situação é aceitável sendo o transporte um direito social, garantido na Constituição Federal?
Isso mesmo, em 15 de setembro de 2015 o Congresso Nacional promulgou a Emenda à Constituição 90/2015, incluindo, no seu artigo 6º, incluindo o transporte na lista de direitos sociais. O transporte passou a ser equiparado com a saúde e a educação, tornando-se um direito social. Apesar do pouco tempo em vigor, os entrevistados pelo jornal Circuito Mato Grosso foram unânimes em dizer que esta mudança deve ser colocada em prática o mais rápido possível.
Mais uma pergunta bem simples para você leitor. Você acha que os R$ 155 milhões que as empresas de transporte público lucram ao ano, com os cerca de 50 milhões de passageiros pagantes em Cuiabá seriam ou não suficientes para garantir um transporte público de qualidade? Mas, as melhorias que deveriam ser feitas, não vêm sendo sentidas pela população, pelo menos é isso que se ouve nas ruas.
"A população de Cuiabá, principalmente, precisa que iniciativas sejam tomadas em relação ao transporte público. Somos obrigados a conviver com ônibus sucateados, sem ar-condicionado, além dos problemas que já se tornaram rotineiros, como atrasos e coletivos lotados", afirma a estudante Mayara Aparecida da Costa.
Para a presidente da Associação dos Usuários de Transporte Coletivo do Estado de Mato Grosso (ASSUT), Marleide Carvalho de Oliveira, a emenda que garante o transporte como direito social, se aplicada será um ganho para a população. Ela defende que o ônibus é o meio mais utilizado para as pessoas terem acesso aos outros direitos: saúde, educação, alimentação, trabalho e moradia.
Quanto à qualidade do transporte público em Cuiabá, Marleide diz acreditar que falta vontade política. “Entra prefeito, sai prefeito e nada muda, a nossa esperança é o que o Veículo Leve Sobre Trilhos possa trazer dignidade ao transporte” diz esperançosa.
Eldemir Pereira de Oliveira, especialista em trânsito pela Universidade Federal de Mato Grosso, enfatiza a precariedade do transporte público, principalmente na Capital. "Ao longo dos anos o número de usuários do transporte coletivo vem caindo significativamente. Isso seria uma indicação de que, claramente, não está sendo prestado um serviço de qualidade", garante o professor.
Foi esse descaso que fez Igor Corrêa da Silva deixar de utilizar o ônibus para ir trabalhar. O mecânico conta que não suportou mais os ônibus lotados e sempre atrasados, além do estresse que tinha diariamente. "Vale a pena você economizar e investir em um veículo. Hoje, eu gastaria quase R$ 150 em vale transportes num mês. Com esse valor eu abasteço minha moto por três meses para ir trabalhar", afirma o mecânico.
Segundo o diretor de transportes da Secretaria de Mobilidade Urbana de Cuiabá (Semob), Leopoldino Queiroz, as maiores reclamações dos usuários são referentes à qualidade do serviço prestado pelas empresas. Ele diz que muitos usuários reclamam do horário. Contudo, afirma que a culpa da falta de pontualidade no transito cuiabano, também se deve a qualidade do trânsito na capital.
Quanto às reclamações de ônibus velhos, Queiroz explica que o contrato de concessão foi feito em 2002. Ele coloca que o contrato permite que, a idade média da frota possa variar de 3,5 anos a 4,5 anos. "Hoje a idade média está em torno de cinco anos. O contrato diz que os ônibus não podem ser superiores a 10 anos. Os ônibus mais velhos que temos vão completar dez anos em dezembro e têm que ser retirados em janeiro do sistema. Já notificamos as empresas para retirada da frota. Hoje temos 55 veículos com ano de 2005 operando", confirma.
Realidade de Cuiabá
O diretor da Semob, Leopoldino Queiroz, explica que há três empresas de ônibus operando na capital. A frota toal compreende 419 ônibus, sendo 372 em operação, mais 56 micro-ônibus. Em média, 192 mil passageiros são transportados por dia.
Segundo Leopoldino, as três empresas têm contrato de concessão, com aditivo até 2019. Contudo, a concessão feita em 2002 está defasada e, embora o prefeito Mauro Mendes (PSB) tenha anunciado uma nova licitação para dezembro, não há nada definido. "Estamos trabalhando na licitação há pelo menos três meses. Foi contratada uma consultoria para fazer a nova licitação no sistema. Mas o que está emperrando realmente a continuidade do trabalho é a questão do VLT", confirma Queiroz ao enfatizar que a prefeitura deve esperar resultado da consultoria do VLT contratada pelo Governo.
O diretor de transporte garante que até janeiro a licitação será publicada. Mas, vale ressaltar que se a prefeitura for esperar o resultado da consultoria, a licitação deve sair somente em fevereiro ou março. Uma vez que a empresa responsável pela consultoria do VLT tem 120 dias para apresentar o resultado e que a assinatura dando início aos trabalhos ocorreu em outubro. " A intenção do prefeito era apresentar essa licitação até o fim do ano, agora o que realmente está segurando um pouco é a situação do VLT. Com ele operando na avenida do CPA e na Fernando Corrêa, nós vamos perder em torno de 40% das linhas" diz Queiroz.
Aumento da tarifa – Uma passagem custa R$ 3,10, então o passageiro tem que desembolsar por dia R$ 6,20 para o trajeto de ida e volta. Uma pessoa que trabalha por conta própria seis dias por semana e ganhando um salário mínimo de R$ 788, comprometeria quase 20% da renda em passagem – R$ 148,80 ao mês.
Segundo Leopoldino Queiroz, os empresários já notificaram a prefeitura para aumento da tarifa. Contudo, o prefeito Mauro Mendes determinou que um estudo seja feito, mas o valor final não está definido. "Este ano não teremos aumento, provavelmente a partir de janeiro", ressalta.
Dados da Semob apontam que, em 2007, foram transportados pouco mais de 86 milhões de passageiros ao ano. Em 2014 o número alcançou 75,1 milhões/ano. Desses, aproximadamente 51,2 milhões eram pagantes. Leopoldino Queiroz reforça que atualmente quase 60% dos transportados pagam passagem. Isso quer dizer, segundo o diretor, que, no cálculo tarifário, os 60% acabam pagando para os outros 40%. "A gratuidade impacta no custo final da passagem. Hoje por exemplo, do total dos transportados 16,80% são estudantes que não pagam. Se diminuíssemos a quantidade de gratuidade, o trabalhador pagaria bem menos", enfatiza Leopoldino Queiroz.
Monopólio "escraviza" passageiros em Várzea Grande
Há pelo menos 13 anos os usuários do transporte coletivo em Várzea Grande desfrutam apenas dos serviços de uma empresa. Isso mesmo, os 75 mil usuários/dia do transporte público na cidade não têm escolha, somente contam com a União Transportes. A situação que iniciou em 2002 deve continuar pelo menos até 2017, prazo que vence a concessão, segundo secretário de Governo de Várzea Grande, Juarez Toledo Pizza.
"É triste isso, mas estamos de pés e mãos atadas, se não for isso, andamos a pé. O pior é que temos que conformar com tudo que a empresa impõe. Temos poucos ônibus e estão todos sucateados. Andamos como em uma lata de sardinha. A quem vamos recorrer? Quero fazer um desafio aos nossos vereadores e a nossa prefeita. Andem um dia de ônibus, sintam na pele o que sentimos todos os dias", declara a vendedora Marlene Souza.
Para o especialista em transportes da Universidade Federal de Mato Grosso, Eldemir Oliveira, o monopólio é uma situação muito complicada. "O cidadão tem que dançar conforme a música, não tem direito de escolha. Para a empresa, se o serviço estiver bem ou mal, o cidadão tem que aceitar", lamenta o professor.
O secretário de Governo por sua vez garante que a licitação feita com a União Transportes atende as exigências do momento. Segundo Joarez, a frota autorizada de 110 ônibus, número suficiente para atender a demanda de Várzea Grande. Para ele, ter ônibus lotados em horário de pico é uma situação normal em todo o Brasil. "O transporte público é complicado avaliar. Aqui em Várzea Grande, por exemplo, 50% da frota fica parada entre as 8 da manhã e as 16 horas por falta de passageiro" enfatiza o secretário ao afirmar que a falta de ônibus não é um problema na cidade.
Empresas operam com contratos vencidos em Mato Grosso
As 253 linhas intermunicipais em Mato Grosso pertencentes às 87 empresas de ônibus operam com contrato vencido. Segundo a Agência de Regulação de Serviços Delegados do Estado de Mato Grosso (Ager), com exceção para a linha Cuiabá e Várzea Grande, licitado em 2006, os contratos da modalidade chamada “convencional” (ônibus), foram firmados em sua grande maioria antes da Constituição de 1988 e todos estão vencidos. Vale ressaltar que em média, por ano, cinco milhões de passageiros são transportados nas linhas intermunicipais.
O presidente da Ager, Carlos Carlão Nascimento, explica que em 2007 o Estado fez Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público quando houve acordo para que nenhum contrato fosse renovado até que se fizesse o processo licitatório. Na ocasião o Estado fez compromisso que até março de 2010 faria o processo licitatório. “Todas as 87 empresas que operam o sistema, operam por pura conveniência do Estado. Elas não têm mais contratos, todos estão vencidos. De 2007 para cá nenhum contrato foi renovado”, diz Carlão.
Nascimento explica que a partir de 1988 qualquer tipo de concessão delegada à iniciativa privada passou por processo licitatório. Hoje, segundo ele, as empresas estão operando por liberalidade do Estado por se tratar de um serviço que não pode parar. Carlão frisa que desde 2012 a Ager está tentando fazer a licitação, mas várias liminares surgiram tentando parar o processo licitatório.
"Em junho de 2014 ficamos livres de todas as liminares. Foi quando a Ager em agosto 2014 foi surpreendida com o decreto 2.499/2014 com o qual Silval Barbosa, então governador do Estado, acabou com o processo licitatório que vinha sendo feito. Foi quando o Ministério Público entrou com ação e conseguiu liminar suspendendo efeitos do processo. Mas como era uma decisão do Governo, a Ager ficou impedida de fazer a licitação uma vez que o Governo estava contestando a liminar.
Em agosto deste ano, o Governo revogou decreto de Silval e deu início ao estudo para processo licitatório. Contudo, a licitação que ficava a cargo da Ager agora cabe à Secretaria de Infraestrutura do Estado. "Vamos aguardar o resultado do Governo, pois hoje a única solução para um transporte de qualidade é garantir a licitação", enfatiza.
Dados – Hoje o Estado conta com 951 ônibus intermunicipais e 151 micro-ônibus. Das 87 empresas que operam em Mato Grosso, uma empresa opera com força de liminar e 48 operam em caráter precário. Segundo a Ager, caráter precário são autorizações que o Estado deu para que as empresas operassem de forma precária em Mato Grosso até o processo licitatório.
Veja a reportagem na íntegra na edição 565 do jornal Cicuito Mato Grosso