A Defensoria Pública da União (DPU) emitiu nota técnica apontando a inconstitucionalidade da Lei Estadual n° 12.197/2023 (Lei do Transporte Zero), que proíbe o transporte, armazenamento e comercialização de pescado pelo período de cinco anos (2024-2029), em Mato Grosso.
Com a proibição, a pesca somente será permitida nas modalidades: pesque e solte; captura de peixes às margens dos rios para consumo no local; e captura para subsistência (consumo próprio). Na prática, ficarão proibidas a pesca profissional artesanal e a pesca como profissão e como modo de vida tradicional.
Na nota técnica assinada pela defensora nacional de direitos humanos, Carolina Soares Castelliano Lucena de Castro, e pelo defensor regional de direitos humanos em Mato Grosso, Renan Sotto Mayor, a DPU citou, ainda, grave violação de direitos humanos no texto legislativo.
“É evidente a incompatibilidade da Lei nº 12.197/2023 com a Constituição Federal de 1988, com diversas leis federais e tratados internacionais de direitos humanos. Além disso, verifica-se que a Lei nº 12.197/2023 gera uma grave violação de direitos humanos”, destacou o documento.
“A citada lei gera uma grave violação de direitos no estado de Mato Grosso, afetando milhares de pescadores e seus familiares, a economia local, e, principalmente, o modo de vida específico de povos e comunidades tradicionais que utilizam a pesca como fonte de renda”, reforça. Nota técnica elaborada pelo Conselho Estadual da Pesca (Cepesca) destaca que 16 mil pescadores atuam na pesca artesanal em Mato Grosso.
O que diz a nota técnica
O documento sinalizou que a lei estadual gera dano existencial, proíbe o exercício de uma profissão lícita e fundamental ao estado, extingue a cultura do povo mato-grossense e restringe o direito à aposentadoria dos pescadores artesanais, que são segurados especiais do Regime Geral de Previdência Social. Entre as violações apontadas, estão:
Retirada compulsória da Previdência Social
A DPU alertou para o fato de que, com a Lei n° 12.197/2023, os pescadores artesanais do estado de Mato Grosso não poderão mais exercer a sua profissão/modo de vida por cinco anos.
“Ao não exercer a profissão de pescador artesanal, não serão mais, a partir de 1º de janeiro de 2024, segurados obrigatórios do Regime Geral de Previdência Social- RGPS (art.11 da Lei 8.213/91), ou seja, não terão os direitos assegurados pela Lei 8.213/1991, como aposentadoria, auxílio por incapacidade temporária, salário-maternidade etc. É importante ressaltar que o pescador artesanal é considerado segurado especial, segundo a Lei 8.213/1991”, ressaltou a nota.
Pela Lei 8.213/91, é considerado pescador artesanal quem faça da pesca profissão habitual ou principal meio de vida. Portanto, a Lei 12.197/2023 inviabiliza a existência de pescadores artesanais no estado.
A nota explicou a situação imposta pela lei aos/as pescadores/as de Mato Grosso no campo previdenciário, com o exemplo de um trabalhador que, em dezembro 2023, tenha 59 anos de idade e apenas 14 anos de trabalho como pescador artesanal. Antes da edição da lei, por ser segurado especial, ele poderia se aposentar em dezembro de 2024. Agora, com a lei, ele não poderá fazer da pesca profissão habitual ou principal meio de vida e, por isso, não mais poderá se aposentar em dezembro de 2024.
Perda do seguro-defeso
A Lei nº 10.779/2003 dispõe sobre a concessão do seguro-desemprego para todos os pescadores artesanais durante o chamado “período de defeso”. É o também denominado seguro-defeso. Essa expressão determina o período em que não é permitida a pesca de uma determinada espécie, devido ao momento de reprodução, a fim de evitar a extinção. Dessa forma, o “seguro-defeso” é a renda fornecida ao pescador artesanal, como um seguro-desemprego.
Para a concessão do seguro-defeso, é requisito previsto na Lei nº 10.779/2003 que o pescador exerça sua atividade profissional ininterruptamente. Os pescadores artesanais de Mato Grosso, a partir de 1º de janeiro de 2024, não poderão mais exercer sua atividade profissional ininterruptamente, conforme exposto anteriormente. Sendo assim, por cota da nova lei, não farão jus ao seguro-defeso.
Dano existencial e ao projeto de vida
“Todos/as pescadores/as e familiares já estão sofrendo evidente dano existencial e ao projeto de vida com a aprovação da Lei n° 12.197/2023. Como sua vida será impactada brutalmente, seu modo de vida tradicional a partir de janeiro de 2024 não poderá mais ser vivenciado”, diz a nota.
“A partir do pressuposto da atividade pesqueira como elemento de dimensão existencial dos/as pescadores/as e demais comunidades tradicionais, por ser uma atividade de caráter tradicional e relacionada à identidade, aplica-se o dano existencial e o dano ao projeto de vida dessas pessoas. Na medida em que proibir a atividade, necessária para a subsistência econômica desses grupos, irá violar seus direitos de existência, culturais e, principalmente, alterar o modo de vida, a rotina e o projeto de vida pessoal de cada um”, explicou.
Violação do direito ao trabalho
Na prática, a Lei n° 12.197/2023 proíbe o exercício de uma profissão lícita e fundamental. Em seu art. 6°, a Constituição Federal menciona expressamente o trabalho como um dos direitos sociais, ao lado da educação, da saúde, da moradia, do lazer, da segurança, da previdência e da assistência à maternidade, à infância e aos desamparados.
Comunidades tradicionais pesqueiras
Além do caráter imediato de fonte de recursos econômicos, não é possível deixar de lado outro motivo para a subsistência da pesca artesanal: a continuidade de uma atividade tradicional, responsável pela identidade de muitas comunidades litorâneas e ribeirinhas. A pesca artesanal, então, além de fonte de renda, é também uma maneira de manutenção de vínculos humanos e culturais, segundo ressaltou a DPU.