Foto: Ahmad Jarrah
Ver as décadas passando frente aos olhos que se escondem cada vez mais entre rugas, buscar lembranças e perceber que as esqueceu sem querer, tornar-se frágil, tão dependente quanto uma criança em início de vida, porém, no fim dela. Esses e vários outros obstáculos são presença certa na vida do ser humano de idade avançada, e que se multiplicam pela falta de respeito e pela violência habitual que se torna mais visível a cada dia em todos os âmbitos da sociedade.
Só na capital mato-grossense, 71 casos de violência contra idosos foram denunciados de 1º janeiro até 31 de maio deste ano, no Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa Idosa (Comdipi). “Para cada uma dessas denúncias, acredito que cinco deixam de ser comunicadas”, relata o presidente da instituição, Jerônimo Luis Barbosa Urei.
Se levados em conta os dados colhidos no conselho este ano e a estimativa de casos não denunciados, será um total de 426 casos até 31 de maio de 2016; praticamente dois casos de maus-tratos por dia.
O presidente elenca que os crimes mais comuns em Cuiabá são os de natureza financeira; abandono, inclusive em unidades de saúde; agressões físicas e psicológicas. Frisa também que 90% dos casos são cometidos da porta para dentro, no ambiente familiar por familiares e pessoas próximas.
“O grande problema de o Estatuto do Idoso não ser respeitado é o desconhecimento da lei até por parte de quem tem que aplicá-las”, ressalta Jerônimo Urei.
Ele exemplifica uma situação típica e constantemente presenciada no transporte público, onde pessoas saudáveis ocupam lugares reservados às pessoas idosas e não o cedem na presença delas. “A pessoa finge que está dormindo. O idoso que fica em pé está sendo discriminado, desdenhado, muitas vezes humilhado e menosprezado”.
Segundo Urei, tal atitude se encaixa nos termos expostos no artigo 96 do Estatuto do Idoso, onde “discriminar pessoa idosa, impedindo ou dificultando seu acesso a operações bancárias, aos meios de transporte, ao direito de contratar ou por qualquer outro meio ou instrumento necessário ao exercício da cidadania, por motivo de idade”, trecho.
“O policial que receber a denúncia não vai saber que isto está tipificado como um crime, com pena de 6 meses a 1 ano e multa. Era o caso de essa pessoa ser levada até a delegacia e ser autuada em flagrante, mas essa rede de proteção do idoso não existe” argumenta Jerônimo.
Familiares e cuidadores são os principais agressores
De acordo com a delegada responsável pelo Núcleo de Atendimento ao Idoso, da Polícia Judiciária Civil (PJC), Cláudia Lisita, os casos mais comuns envolvem familiares como agressores, mas também há casos de cuidadores que realizam os maus-tratos.
“Acontece muito de o cuidador praticar os maus tratos e até apropriação de bens. É importante que a família esteja em vigilância constante a estes profissionais, pois este é o principal meio de evitar esses fatos. É bom estar sempre fiscalizando o serviço e manter um diálogo frequente com o idoso”, orienta a delegada.
Os principais crimes que chegam até a unidade são os que incorrem no Estatuto do Idoso. Segundo a delegada, são raras as vezes em que a própria vítima denuncia os casos. “As denúncias são feitas de maneira anônima, ou pelos próprios familiares, vizinhos ou conhecidos que presenciaram a situação. Pouquíssimas vezes são as próprias vítimas que vêm e, quando isso acontece, logo desistem por se tratar de familiares na maioria das vezes”, relata.
Segundo ela, o fator da proximidade dos agressores com a vítima influencia muito nas denúncias e também nas investigações. “A principal dificuldade neste tipo de investigação é a própria vítima, que muitas vezes reluta em colaborar com a gente porque não quer prejudicar o filho, o neto, os familiares de uma maneira geral. A vítima se torna refém do sentimento, ou tem, até mesmo, medo de perder o cuidador”, salienta Lisita, explicando que uma vez feita a denúncia, as investigações vão até o fim.
Todos os crimes que o Estatuto do Idoso prevê são de ação pública incondicionada e, segundo a delegada, esse fator é importante, pois influência o idoso a não desistir da ação, já que na maioria das vezes a pena é a reclusão. O que de certa maneira mostra à sociedade que a justiça acontece e acaba influenciando mais casos a serem denunciados.
Equipe
Os crimes de maus tratos e violência contra a pessoa idosa de toda Cuiabá são atendidos por uma equipe composta por cinco pessoas (delegada, escrivã, dois investigadores e estagiária). Eles formam o Núcleo de Atendimento ao Idoso, unidade da Polícia Judiciária Civil (PJC) que atende dentro da Delegacia Especializada de Defesa da Mulher (DDM).
“A gente já esteve em situações bem difíceis, mas estamos melhorando aos poucos a situação de trabalho. Infelizmente temos problemas no efetivo, mas isso abrange todos os setores do Estado”, explica.
Denúncias aumentam por causa do envolvimento da sociedade
“Em um ano que estou à frente desse núcleo, é perceptível o aumento dos casos. Não creio que a violência esteja aumentando, mas sim o envolvimento da sociedade. As pessoas estão vendo que os atos constituem em crime e são penalizados”, ressalta.
As denúncias chegam até o núcleo por meio de denúncias presenciais ou por telefonemas, podendo se feitas de maneira anônima. A delegada checa as informações e uma equipe, se necessário, vai até o local a fim de verificar os possíveis maus-tratos. Segundo a delegada, esse procedimento é importante, pois acontece de algumas denúncias serem falsas e realizadas a fim de prejudicar um desafeto.
“Nós olhamos tudo, conversamos com o idoso, verificamos o quarto onde ele dorme, a alimentação etc., uma verificação geral é feita e se comprovado os maus-tratos ou qualquer outra irregularidade, é dado início ao nosso inquérito policial”, conta.
É comum entre as pessoas a crença de que maus tratos é, em suma, o ato de agredir fisicamente a pessoa idosa, porém, de acordo com a delegada, os fatores vão além. “Maus tratos não é só agressão física. É qualquer atitude que poça colocar em risco a integridade física e psíquica do idoso. Uma humilhação, alimentação inadequada ou uma voz alterada já caracteriza maus-tratos”.
Cláudia Maria Lisita compara a fase que a sociedade passa em relação às leis de proteção à pessoa idosa com o início das leis das mulheres. Ela ressalta ainda que a violência contra o idoso sempre existiu e é rotineira na casa de muitas famílias, assim como a violência contra a mulher era no início. Porém as defesas dos direitos do idoso devem seguir a mesma linha das da mulher, pois a sociedade passa a entender e não aceitar tais abusos.
“Assim como na época da lei de proteção para as mulheres, é necessário que a população se envolva. O caminho é exatamente esse, quanto mais a sociedade se envolver, mais a violência se torna visível”, ressalta.
Segundo ela, a expectativa de criação da Delegacia do Idoso é grande, pois os casos têm aumentado juntamente com a população idosa, mas que o trabalho segue com os pés no chão realizado devidamente com as ferramentas que tem nas mãos.
“Existe a expectativa de criação da Delegacia do Idoso no futuro, mas, por enquanto, devido às dificuldades que o Estado enfrenta em relação a efetivo e financeiramente, por enquanto o núcleo vai ficando dentro da Delegacia da Mulher”, afirma.