Descortino minhas memórias dos dias de São Cosme e São Damião. Os dias das entidades ibêjis, representantes do princípio da dualidade, vêm lá da infância. Àquela época, não me lembro de ter conhecimento sobre o paradeiro dos jovens de origem árabe, nascidos na cidade de Egeia pelos anos 260. Morávamos na cidade do Rio de Janeiro, bairro Tijuca, cortado pelo rio Maracanã, à rua Almirante João Cândido Brasil, via pública que faz homenagem a João Cândido Felisberto, o Almirante Negro da Revolta da Chibata. Essa rua desemboca na Praça Varnhagen, historiador e autor do livro “História Geral do Brasil”, escrito na década de 1850 e considerada uma obra de fôlego sobre historiografia do Brasil Colonial, uma das divisões da História que muito me interesso, desde os tempos de graduação.
Como escreveu o historiador francês Michel de Certeau (2002: 200), “todo relato é um relato de viagem”. Posso fazer uma leitura do desenho desse espaço, meu “abecedário da indicação espacial”, onde vivi e vivenciei os irmãos gêmeos. De frente ao edifício em que morávamos estava a casa de minha bisavó Chica, de origem espanhola. O número da casa eu me lembro bem: 11. Pouco convivi com bisavó Chica, que com ela também moravam meus tios Nock e Ruth e meu primo Ivan, Grauben e Martinho. Minha rua, a Praça Varnhagen e a rua Felipe Camarão (ou Potiguaçu, indígena Potiguar), onde moravam meus tios Bagunceiro e Creuza, são lugares praticados por mim, ainda que não habite mais naquele bairro: “a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema de signos – um escrito.”
Dia de São Cosme e Damião era muito esperado por mim e meus irmãos, acho que como o dia de Natal. Nossa rotina escolar virava às avessas, graças à tia Grauben, que tinha a perna esquerda (se não me engano) bem mais curta do que a direita, em consequência de uma injeção mal aplicada nas nádegas, quando criança. Em dia de São Cosme e Damião, permitia-se “matar aula”, ficar longe das tarefas escolares.
Bem cedo, esperávamos por tia Grauben, uma figura singular. De estatura muito baixa, cabelos compridos e oxigenados, se recusava a usar sapatos ortopédicos com solado alto para amenizar seu enorme esforço para andar. Tinha o vício de mascar tabaco, escondido da família, mas não dos sobrinhos, coisa que me incomodava muito pelo odor forte das folhas de fumo. Mas, o que importava mesmo era a alegria contagiante da tia que nos visitava com frequência, a dar “quarto a pregoeiro”, como anunciava papai ao abrir a porta para a excêntrica visitante.
27 de setembro. Todos preparados para a expedição pelas ruas geométricas das cercanias da Praça Varnhagen, transformadas em espaços organizados para uma espécie de jogo, com regras a observar. A destreza de Grauben nos surpreendia. Ágil, a segurar nas mãos dos irmãos menores, percorria as ruas numa ligeireza que parecia superar sua dificuldade de locomoção. Ela sabia onde eram distribuídos os fartos saquinhos de São Cosme e Damião, com suas imagens estampadas nos saquinhos de papel, nas cores vermelha e verde. Paçocas, marias-moles, suspiros, bananadas, doces de abóbora e de batata doce, estes os preferidos de mamãe que aguardava em casa as guloseimas dos gêmeos que estudaram medicina e atendiam pela caridade à população carente. Para as crianças enfermas, davam balas para amenizar seu sofrimento.
Neste último dia de São Cosme e São Damião, eu e Edu a caminhar de máscaras pelo Terra Nova, em uma rua transversal à Avenida A, a principal do bairro, depois de cinco meses em isolamento social, após a prefeitura reabrir o Parque da Família, encontramos duas oferendas aos santos cuidadores. Doces memórias: Edu a lembrar de seu tempo de criança, a percorrer as casas centenárias de Laranjeiras, junto com Luzia, sua babá, atrás de saquinhos de balas; eu a olhar para as oferendas, que não estavam nos saquinhos de papel de pão, personalizados com a imagem dos ibêjis, mas senti uma imensa saudade da tia Grauben.