Cidades

Do fundo do poço à consciência do vício

Em uma entrevista exclusiva ao Circuito Mato Grosso, o ex-usuário de crack *João Oliveira Junior contou sua história em um depoimento repleto de críticas à política social do País, analisando ainda como funciona quando se está dentro do vício, ao ponto de quase desistir de tudo.

O primeiro cigarro foi aceso aos 13 anos, época em que também tomou suas primeiras biritas.  Aos 15 ele fumou maconha. Com 17 anos começou a usar drogas químicas, esporadicamente, passou por graves problemas familiares com a perda de três entes queridos e só foi parar aos 27.

“O que mudou com o tempo foi só a frequência. No começo era uma vez ou outra, depois fui diminuindo os espaços de tempo, mas você não consegue perceber o que está ocorrendo. Depois de um tempo você começa a não ter a noção do problema”, reflete.

Ele conta que, depois de um tempo, o usuário não tem mais consciência de todos os seus sentidos e a capacidade de racionalizar sobre o que, de fato, está ocorrendo.

“Você acaba perdendo o sentindo, perdendo o colorido da vida, não se importando mais com as coisas e acaba buscando um modo de fugir da realidade. Na verdade, não é de um dia para o outro, é gradativo e leva muito tempo, por isso a recuperação também é tão difícil e demorada, podendo levar até o resto da vida da pessoa, pois uma pessoa que sofre de adicção é doente e depende de alguma coisa”.

Ele explica que quem passa a ser usuário de drogas químicas precisa da droga todos os dias e passa a viver em função disso, tentando conseguir dinheiro para manter o vício.

“A pessoa até consegue pensar, mas fica mais parecida com um zumbi, pois não consegue ter força para mudar a atitude. O problema da cocaína e da base, assim como o crack, é a sensação de sempre querer mais. Ela age instantaneamente causando sensação de alívio e tem duração entre dez e quinze minutos. Quando acaba, a primeira coisa que você pensa é que quer mais. Posso dizer que a sensação nem é bem de prazer, é uma coisa estranha, é uma ansiedade. Você não fica relaxado, mas fica ligado, pois estimula o sistema nervoso. Essa sensação de querer mais é muito maior, por isso a pessoa morre usando essa ‘bosta’. Depois de um tempo, se o psicológico da pessoa for fraco, além de ela não conseguir sair, ela vai se afundando cada vez mais. E é muito difícil ela aceitar que precisa de ajuda, a gente sempre pensa que tem o controle”, desabafa.

Em seu discurso João explica que isso não significa que a pessoa não possa sair sozinha do vício, mas que é muito mais fácil com apoio psicológico e de familiares.

“No meu caso, eu já sabia que eu estava com problema, que estava viciado em droga e que eu tinha que sair dessa vida ou ia morrer ou virar mendigo, pois você não tem mais controle de nada, não consegue trabalhar e muitos viram ladrão. Você vê a morte de perto. Eu não cheguei a ver ninguém morrer, mas quase”.

A sombra

João chegou a ir morar em São Paulo, onde a realidade do mundo do crack é muito mais intensa. Em determinado momento ele deixou de dar notícias, então sua família e amigos se preocuparam e foram atrás dele na capital paulista.

“Lá é droga em todo canto. Não é um bom lugar para você se recuperar. Mas não é o lugar que faz a pessoa mudar, é ela. O lugar pode piorar, pois você não recebe ajuda e apoio de ninguém”.

De onde a mudança veio

A fórmula para sair do mundo das drogas é apenas uma, segundo João: mudar a mente e as atitudes.

“Para voltar a viver é preciso mudar a cabeça. O psicológico é que coordena os atos da pessoa e um adolescente ou criança não tem tanta noção desses atos, a cabeça dela não pensa dessa forma, não tem tanta responsabilidade nas atitudes, não pensa muito no depois e, como a maioria dos casos, começa com o cigarro ou bebida, a que qualquer um tem acesso. Após mudar a cabeça é preciso mudar os hábitos, mudar os amigos, os lugares que você frequenta. Fazer a mesma coisa não muda, é preciso fazer diferente, parece uma coisa óbvia, mas é a verdade”, diz ele, pontuando que não estaria vivo se ainda estivesse envolvido com drogas.

A decisão voluntária de se internar

Em um dado momento João decidiu que não queria morrer e que iria se tratar. “A partir do momento que eu fui até o juiz, voluntariamente, e pedi para ser internado, em 2012, eu nunca mais usei drogas. Essa internação serviu como aprendizado para eu avaliar a minha vida e pensar no que tinha ocorrido na minha vida até então”.

Durante o período em que esteve se desintoxicando ele conta que a distância dos amigos e familiares, os horário restritos para visitas e todo o universo da internação, dão tempo para que os usuários em recuperação possam colocar a cabeça no lugar, com ajuda de psicólogos e apoio das pessoas que estão na mesma situação.

“É minha cabeça que fala para a minha mão pegar um cigarro de base, ir até a boca de fumo ou que for e esse que é o ponto. Quando a pessoa está envolvida com a droga no dia a dia, ela não consegue mais pensar e ter a clareza e força para mudar, pois o psicológico fraco não consegue falar não. O uso de drogas tem muita relação com a depressão, pois, ao invés da pessoa enfrentar os problemas dela, ela usa aquilo como válvula de escape e foge por meio das drogas”.

Foco no trabalho e na família após internação

Após 33 dias de internação, João saiu da clínica. Há 4 anos, ele não usa mais base, crack ou cocaína. Com 31 anos de idade ele acaba de se tornar pai e afirma que sua vida mudou, quando ele decidiu que precisava parar.

Após se livrar do vício e colocar a cabeça no lugar ele decidiu focar no trabalho, prestou um concurso e passou. “Depois que você realiza conquistas, você se anima. O mais difícil é sempre o começo. É preciso aprender a pensar em outras coisas, pois o pensamento atrai”, reflete.

E afirma que o nascimento do filho o deixou mais feliz do que nunca. “Quando eu ouvi falar que eu iria ser pai eu não consegui mais nem pensar em outras coisas direito, tudo que penso agora é meu filho e isso só acontece quando você descobre que é com você”.

Usa maconha, mas não faz apologia

Atualmente a única droga utilizada por João é a maconha, a qual ele não considera como droga, mas também não faz apologia.

“Não sei se ela deveria ser legalizada, mas deveria ter um controle de fornecimento e abastecimento do governo e proibição total de álcool e cigarro. Mas o Brasil é hipócrita, falam para não beber e dirigir, mas também é lei não transitar acima de 60 km/h dentro da cidade e na estrada até 120 km/h e mesmo assim fabricam carros que vão até 260km por hora”.

Oliveira afirma que tudo se resume a política, a qual ele denomina como distorcida. Para ele, a maconha é totalmente diferente de outras drogas e repudia o álcool e especialmente o cigarro.

“Hoje a maconha é usada no tratamento de diversos tipos de doenças, e o cigarro? Só tem coisa ruim, mas é liberado, pois favorece grandes empresas que já são ligadas com politicagem e multinacionais. É a troca de favores. Como é que uma planta tem que ser tratada dessa forma e um cigarro, produzido pelo homem para fazer mal, tá tudo bem? É a mesma coisa que a cachaça, que também faz muito mal, vicia, altera o nível de consciência e você encontra em cada esquina”.

Para ele a maconha não atrapalha a vida de ninguém. “Eu nunca vi ninguém que não consegue fazer alguma coisa porque fumou, diferente do álcool. Se a pessoa está bêbeda não consegue parar em pé. O cigarro não deturpa a consciência, mas faz muito mal com suas mais de 4 mil substancia tóxicas. Eles colocam fotos da pessoa morta na carteira, mas o governo libera a venda”.
*O entrevistado pediu para usar um nome fictício.

5% dos adultos já usaram droga

De acordo com o Relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) cerca de 5% da população adulta, ou 250 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos, usou pelo menos algum tipo de droga em 2014. O documento ainda revelou que 29 milhões de adultos dependem de drogas.

A partir de um levantamento realizado pelo Ministério da Saúde e Fundação Oswaldo Cruz, divulgado em 2014, concluiu-se que 366 mil pessoas usam crack no Brasil regularmente. A pesquisa revelou que um em cada nove usuários rouba para sustentar o vício.  Desses, 5% vive com HIV.

A discussão em torno do uso de drogas e políticas públicas sobre o assunto vem acontecendo com mais força no País, especialmente no que diz respeito à maconha e sua utilização para fins medicinais. O fato é que ainda não houve consenso entre o legislativo e judiciário nacional sobre o tema.

Uma pesquisa feita informalmente pelo jornal Circuito Mato Grosso em Cuiabá constatou que, 33% dos pesquisados já fizeram uso da maconha. A reportagem indagou 348 pessoas, e 118 admitiram o usa do entorpecente.

Josiane Dalmagro

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