Quando Cuiabá foi escolhida, em 2009, uma das doze sedes da Copa, os mato-grossenses ficaram esperançosos de deixar no passado a palavra atraso. Com infraestrutura urbana precária, a capital do Estado prometia uma revolução. Porém, uma visita à cidade revela que a palavra atraso, além de ser pronunciada em todas as esquinas, agora vem acompanhada de termos como desvio e improviso. As principais obras de mobilidade urbana não ficaram – e nem ficarão – prontas a tempo. O deslocamento na cidade é caótico: dezenas de placas de trânsito indicam caminhos interditados por causa de canteiros de obras, que acumulam entulho e barro. Com tráfego pesado, as ruas alternativas foram esburacadas. Principal responsável pelo iminente vexame que o Brasil transmitirá aos estrangeiros que chegarão ao país nas próximas semanas, o governo de Mato Grosso admite o despreparo para executar as obras prometidas e tenta garantir o mínimo. "Se eu não trouxer o turista, o torcedor, a família Fifa e os jogadores do aeroporto ao hotel sem passar por aqueles desvios e lugares terríveis eu matei a minha cidade e a minha copa", disse ao site de VEJA o responsável pela Secretaria Extraordinária da Copa do Mundo, Maurício Guimarães.
A capital mato-grossense tornou-se exemplo de como não fazer: subestimou dificuldades previsíveis, como as desapropriações de imóveis, falta de mão de obra qualificada, má gestão e atrasos no repasse dos recursos federais e na conclusão dos projetos. “As condições financeiras apareceram e fomos audaciosos de abraçar tudo para não desperdiçar o que estava à disposição do poder público, como sede de Copa. Isso criou um grande volume de execução num tempo muito curto. Foi obra demais, excesso de trabalho. O Estado não estava preparado”, admite Maurício Guimarães. Parte da responsabilidade pela desorganização pode ser atribuída à escolha das sedes: a Fifa sugeriu de oito a dez, mas o Brasil queria ampliar para dezessete; terminou com doze. A pulverização fez o país erguer estádios milionários que dificilmente terão utilidade no futuro – Mato Grosso, por exemplo, não tem nenhum time na elite do futebol, tampouco um campeonato estadual atraente.
Os primeiros visitantes desembarcarão num empoeirado cenário de “praça de guerra”, conforme definiu na semana passada o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Augusto Nardes. Apesar de não haver nenhuma batalha em Cuiabá, os atrasos mais visíveis ficam em “trincheiras” – mergulhões para carros em cruzamentos da Avenida Miguel Sutil, que corta a cidade com pistas mal pavimentadas e conversões improvisadas. As duas maiores "trincheiras", Jurumirim e Santa Rosa, ficarão pela metade, somente com pistas laterais e rotatórias abertas à passagem de carros depois de asfaltadas às pressas. Na da Santa Rosa, ainda vaza água em solo com terra e pedras aparentes em frente ao hotel onde a comitiva da Fifa se hospedará.
O Tribunal de Contas do Estado (TCE) e o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA) questionaram em vistorias o acabamento das obras. Relatórios dos dois órgãos apontaram uma série de falhas visíveis nas construções: ausência de sinalização, infiltrações, drenagem inadequada, rachaduras e paredes tortas (fora de prumo). A pista de saída do recém-inaugurado Viaduto do Despraiado, por exemplo, corre o risco de ser invadida por terra se chover forte por causa do deslizamento de um barranco ao lado. “Em novembro do ano passado já apontávamos que as obras não estariam prontas se continuassem no ritmo em que se encontravam”, disse o conselheiro do CREA-MT André Schuring. "Por causa da qualidade terrível, começava a ficar claro que o tal legado da Copa também é uma obra de ficção." Ele observa a necessidade de inspeções técnicas para identificar quanto pode custar ao município o eventual reparo dos erros.
Reclamar das obras não é exclusividade da turma "do contra". Até ex-gestores do governo Silval Barbosa (PMDB) se constrangeram com a preparação. "Eu fico com vergonha em receber as pessoas com a bagunça que fizeram em Cuiabá. Está tudo arrebentado", disse à reportagem, sob anonimato, um ex-secretário do Estado.
Não faltou dinheiro. Só as obras da Copa em Cuiabá custaram aos cofres públicos pelo menos 2,3 bilhões de reais, de acordo com levantamento da ONG Contas Abertas. Porém, o governo só executou pouco mais de metade do orçamento: 1,2 bilhão de reais. Maior e mais caro projeto, o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) consumiu mais de 1,5 bilhão de reais e só deve entrar em operação em 2015. Os operários abandonaram boa parte dos canteiros ao longo dos 22 quilômetros do modal, na estratégia do governo estadual de priorizar as construções com chance de conclusão, ainda que parcial. De todas as obras previstas na matriz de responsabilidades, Cuiabá deve entregar apenas o estádio e o corredor viário Mário Andreazza – duplicação da rodovia e da ponte de acesso entre aeroporto e o centro da capital. O Arena Pantanal, um estádio moderno de 570 milhões de reais, já está sob administração da Fifa – mas ainda falta concluir o cabeamento e instalar estruturas de apoio temporárias, cabines de transmissão, tendas e grades.
Chegada – O secretário Maurício Guimarães diz que "todas as obras lhe preocupam", mas vai priorizar a liberação da saída do aeroporto de Cuiabá, trecho que ele considera "o principal gargalo". Passageiros elegeram o Marechal Rondon o pior aeroporto entre os quinze que servirão aos turistas na Copa – são doze sedes, mas São Paulo tem três aeroportos, e o Rio, dois. Cuiabá ficou na última posição em quatro das cinco pesquisas de satisfação da Secretaria da Aviação Civil da Presidência. A estrutura é acanhada: banheiros apertados e faltam calçadas livres na entrada do terminal de embarque, ainda em obras de ampliação.
Sair do aeroporto será tarefa desgastante. As interdições de trânsito têm causado engarrafamentos intensos na cidade: a frota da capital e da cidade vizinha Várzea Grande, onde fica o Marechal Rondon, soma 224 000 carros e 104 000 motos, para uma população conjunta de 833 000 habitantes. E há um agravante: o déficit de táxis. Sem contar os turistas, a média é de mais de 1 000 habitantes por taxista nos dois municípios. Em São Paulo, a proporção é mais branda: cada táxi serve a 360 moradores. "Acho que os turistas vão ficar muito arrependidos e se perguntar o que vieram fazer aqui", disse o taxista em Várzea Grande Pedro Paulo Ventura, de 29 anos.
Estada – Outro problema estrutural de Cuiabá é a rede hoteleira. Na primeira fase do Mundial, o governo estima que a cidade receberá entre 40.000 e 50.000 estrangeiros, vindos principalmente da Colômbia, Austrália e Chile. A secretaria de Turismo da prefeitura de Cuiabá ficou responsável por buscar alternativas de acomodação aos turistas para suprir a demanda nas partidas de pico. Em um raio de 200 quilômetros da capital, existem apenas 23 000 leitos hoteleiros – e o déficit é de 12 000 vagas, segundo o secretário Marcus Fabrício. A prefeitura incentivou que cuiabanos alugassem quartos em suas casas no esquema cama e café (bed and breakfest, em inglês) ou locassem os imóveis por temporada. Nos últimos dias, Fabrício visitou terrenos próximos ao estádio que podem servir de camping para mochileiros, principalmente chilenos, que pretendem viajar ao Brasil de carro, ônibus ou em motor-homes. O secretário também solicitou a motéis da cidade o bloqueio de cerca de 500 quartos frequentados por casais na madrugada, anote-se, com decoração adaptada: "Só precisa retirar o espelho do teto e a cama redonda, resolver essas questões". Ele não considera que hospedagem cause estranheza aos hóspedes estrangeiros: "Nos Estados Unidos é comum dormir em motel, o conceito é diferente." Mas os preços (além das camas redondas que sobreviverem à "adaptação") certamente devem espantar: no motel Segredos, a suíte dupla sairá por 1.200 reais, com hidromassagem e piscina, e as simples por 600 reais. A opção derradeira é típica de encontros universitários: alojamentos gratuitos com colchonetes em salas de aula de escolas estaduais ou igrejas.
O diretor de hotéis do Sindicato Intermunicipal dos Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de Mato Grosso, Luiz Verdun, explica que a rede hoteleira de Cuiabá cresceu pouco desde que a cidade foi eleita como sede do mundial: havia cerca de 12 000 quartos e agora existem mais de 13 000 unidades. Segundo ele, a capital do Estado não possui demanda que sustente o mercado ao longo do ano. Verdun prevê uma "guerra de tarifas" no período pós-Copa: "O investimento é pesado, rede hoteleira não é barraca de camping que se desmonta após a festa. Muita gente vai quebrar ou terá de transformar os prédios em salas comerciais". O representante do setor também relata que os hotéis não conseguiram vender pacotes de estada com visitação às principais atrações turísticas e que sobram vagas para os dias das partidas Rússia x Coréia do Sul e Bósnia Herzegovina x Nigéria. "O turista reservou apenas um ou dois dias, só para ver o jogo e ir embora", afirma. "A Copa existe em Cuiabá em função da ecologia. Mas não fizeram absolutamente nada no Pantanal e as estradas até lá são péssimas e perigosas. A Chapada dos Guimarães bloqueou pontos de visitação muito populares."
Desde o início do ano, os mato-grossenses de Cuiabá e Várzea Grande convivem com crimes em elevação. Nos quatro primeiros meses, os homicídios aumentaram 45% e os roubos 41% nas duas maiores cidades do Estado, ante o mesmo período do ano passado. Até abril, as cidades somaram 158 assassinatos enquanto em 2013 houve 109 homicídios. Os roubos chegaram à marca de 2851 ante 2021 no ano mesmo período do ano anterior. A cidade terá reforço de tropas federais, mas Secretaria da Segurança Pública faz sigilo sobre a quantidade: “Em momento algum turistas estrangeiros ou nacionais irão correr riscos em solo mato-grossense”.
Se depois de tantos percalços em dias quentes com temperaturas acima dos 30 graus, os turistas saírem de Cuiabá com uma boa impressão do Brasil, deve ser por causa da simpatia dos cuiabanos e da boa mesa que a região oferece. Essa também é a esperança do governo estadual. Apesar de descrentes, os mato-grossenses ainda têm expectativa de que a cidade melhore. "É um transtorno que estamos passando, mas no futuro será benéfico para a população", disse o corretor de imóveis Clayton Gomes, de 33 anos, morador de Colíder (MT) a 630 quilômetros de Cuiabá.
Felipe Frazão – Revista Veja