Opinião

Depois de exterminada a última nação indígena

Escreveu o etnólogo brasileiro Edgard Roquette-Pinto que esteve em Mato Grosso, em 1919, entre o povo Nambiquara:

“Dormir, excitado por aquele quadro de mágica, desenrolado à meia noite? Dormir naquela noite inesquecível em que a sorte me tinha feito surpreender, vivo e ativo, o homem da idade da pedra, recluso no coração do Brasil, a mim, que acabava de chegar da Europa e estava ainda com o cérebro cheio do que a terra possui de requintado, na diferenciação evolutiva da humanidade.  Que gente é essa, que fala idioma tão diferente das línguas conhecidas, tão diferente da língua dos seus mais próximos vizinhos; que tem costumes tão estranhos aos que vivem perto; que não conhece os objetos essenciais da vida dos seus companheiros de sertão? De onde veio? Por onde passou que não deixou rastros? Quando chegou àquelas matas, onde vive há tanto tempo? Que ligações tem com os outros filhos do Brasil?”

Décadas mais tarde…

Escreveu o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss que também esteve, em 1938, entre o povo Nambiquara:

“No cerrado escuro, brilham as fogueiras do acampamento.  Em torno do fogo, única proteção contra o frio, atrás de frágeis palhas e de galhos apressadamente fincados no chão do lado de onde se teme o vento ou a chuva; junto dos cestos cheios de poucos objetos que constituem toda uma riqueza terrestre; deitados direto sobre a terra que se estende ao redor, os esposos enlaçados estreitamente, veem como sendo um para o outro o apoio, o reconforto, o único recurso contra as dificuldades cotidianas e a melancolia sonhadora que, de vez em quando, invade a alma nambiquara. O visitante que, pela primeira vez, acampa no mato com os índios, sente-se tomado de angústia e de pena diante do espetáculo dessa humanidade tão completamente desvalida; esmagada, ao que parece, contra o solo de uma terra hostil por algum implacável cataclismo; nua, tiritante junto das fogueiras vacilantes.  Ele circula tateando em meio ao matagal, evitando esbarrar na mão de alguém, num braço, num torso, cujos reflexos ardentes se entreveem à luz das fogueiras.  Mas esse cenário é animado por cochichos e risos.  Os casais abraçam-se como nostálgicos de uma unidade perdida; as carícias não são interrompidas à passagem do estrangeiro. Pressentimos em todos uma imensa gentileza, uma profunda despreocupação, uma ingênua e encantadora satisfação animal, e, reunindo, esses sentimentos diversos, algo como a expressão mais comovente e mais verídica da ternura humana.”

Ainda no livro Tristes Trópicos, considerado um clássico da Antropologia, Lévi-Strauss sintetiza a vida política do povo Nambiquara: “Eu procurava uma sociedade reduzida à sua expressão mais simples. A dos Nambiquara o era, a tal ponto que nela só encontrei homens.”

As duas orações, palavras-sentimento de Roquette-Pinto e Lévi-Strauss  expressaram a simplicidade e a afetuosidade existentes entre os indígenas da etnia Nambiquara que, sem dúvida, podem nos ensinar a viver melhor.

A exemplo, os indígenas da etnia Nambiquara têm por princípio possuir o estritamente necessário para prover suas necessidades. Esses objetos básicos, indispensáveis às atividades cotidianas, podem ser acondicionados em seu cesto-cargueiro, hatisu, pois acreditam que só possam possuir bens materiais que caibam dentro dele.

Aglomerados por laços de parentesco e de reciprocidade no trabalho coletivo e no exercício da religiosidade, cada dia de sua existência precisa ser vivido e experimentado com alegria.  Ser feliz, no sentido mais amplo, indica gozar de uma vida boa, ter bens, dispor de comida em abundância e possui uma família.  Na aldeia, a reciprocidade é um dos mandamentos essenciais ao fazer parte do grupo, sob a liderança de um homem. Sua liderança, por mais efêmera que pareça, une atributos de iniciador, trabalhador, prestígio, alegria, generosidade. A generosidade produz vínculos sociais de solidariedade e de compromisso, os quais se manifestam sob as mais diversas formas de troca e prestações com os indivíduos de seu grupo, como uma regra que elege a obrigação de dar, de receber e de retribuir. As famílias são unidades de consumo e produção, e os principais bens, quando necessários aos grupos familiares, são socializados sob a forma de empréstimo, permuta ou cessão espontânea.

O povo indígena Nambiquara crê que na abóbada celestial existe uma enorme Figueira, Haluhalunekisu, visível apenas aos olhos do wanintesu, o pajé, único que pode, à tarde, viajar às alturas com o auxílio de uma pena de gavião presa ao orifício do septo nasal. De imensas raízes que envolvem a terra de todos os homens, Haluhalunekisu é a ‘árvore do choro da mulher-espírito’ que está no firmamento, no universo e, abaixo dela, o mundo dos homens.

Dauasununsu, ser supremo Nambiquara, conhecedor de todas as coisas, reina na copa do frondoso vegetal. Ele não está só. Nos galhos da figueira vivem as aves tesoureiros grandes, tesoureiros pequenos e curiangos. Também moram as libélulas, encarregadas por Dauasununsu de fazer chover. Nos primórdios da humanidade, os insetos alados desciam da árvore e espanavam com os pezinhos a água da lagoa para fazer chover na terra. Jogavam água sem parar, prejudicando os indígenas que não podiam caçar, pescar e colher por estar a terra inundada. As incessantes chuvas provocaram um dilúvio que levaram os indígenas à morte, sobrevivendo apenas um velho.

O homem velho, com o auxílio das almas, conseguiu subir até à árvore sagrada e ensinar às libélulas a reconhecer as florzinhas novas do capim, a ouvir o estrondo dos trovões e o canto estridente dos machos da cigarra a avisarem a chegada da chuva.  Assim as libélulas aprenderam a distribuir chuva com regularidade, sem ocasionar catástrofes ao povo Nambiquara.

Nos galhos de Haluhalunekisu vive também um gavião, ave rapina temida tanto pelos pássaros e insetos que moram na árvore como pelos experientes pajés que conseguem seguir suas raízes e atingir o firmamento para renovar seus poderes espirituais junto a Dauasununsu.  Quando se ouve o choro do filhote de gavião é sinal de que a Figueira necessita adquirir a vitalidade perdida e seu solo, a terra dos homens, passar por uma limpeza, para que os dias voltem à normalidade.

A vitalidade de Haluhalunekisu, a grande árvore, faz-se necessária para o equilíbrio do mundo dos índios e não índios. Essa tarefa é movida pelo repertório musical do pajé, entoado em sessões noturnas de cura, quando canta “O filhote de gavião está chorando porque debaixo dela está muito sujo”. Essa impureza refere-se ao mal comportamento dos habitantes da Terra.

Também chamada de ‘árvore que segura o céu’, Haluhalunekisu tem o amparo do pajé que deve estar constantemente atento ao canto noturno do gavião. Ao ouvir o guinchar da ave, deve viajar até ao vegetal sagrado e sugar seu tronco para retirar larvas que podem fazê-lo apodrecer. Dessa maneira, evitará a morte da Figueira, o que ocasionaria o céu cair sobre a humanidade.

Os primeiros sinais da insatisfação furiosa de Dauasununsu refletem nas folhas da copa da Haluhalunekisu, quando começam a amarelecer e cair. Todos os indígenas devem se preocupar em satisfazer os desejos de Dauasununsu, que preza pelo dom da dádiva, fartura de alimento, alegria, bondade e vontade de beleza; caso contrário, castigará a todos, indistintamente, com a escuridão. Não há como enganá-lo, pois guarda em sua memória todas as ações dos homens.

Cantou Caetano Veloso e tantos outros,

“Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante.
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério Sul.
Na América, num claro instante,

Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias.”

 

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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