O incêndio na Catedral de Notre-Dame completa um mês na quarta, 15, mas ainda fica a pergunta: e se fosse no Brasil? Mais do que medidas de controle de fogo, o patrimônio religioso no País enfrenta dificuldade para se manter de pé e em pleno funcionamento. A situação é grave em todas as regiões, até mesmo na cidade de São Paulo, que tem ao menos 46 igrejas, capelas e mosteiros católicos tombados.
O Estado visitou 12 das 20 igrejas e capelas do centro histórico cuja preservação é determinada por órgãos de patrimônio municipais, estaduais e federais. Em parte, apenas uma avaliação visual já encontra problemas, como infiltração em uma parede da Catedral da Sé, o piso inflado na Igreja Santo Antônio (na Praça do Patriarca) e a falta de restauro de pinturas artísticas nas paredes e no teto de diversas. Além disso, identificou-se que somente sete das igrejas tombadas têm Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB). Dentre elas estão a Nossa Senhora do Brasil (nos Jardins) e São João Maria Vian ney (na Água Branca). O levantamento considerou apenas os 46 imóveis cujo tombamento já foi publicado em resolução.
Três dos casos mais graves afetam alguns dos templos mais marcantes da capital: a Capela Nossa Senhora dos Aflitos, na Liberdade; a Igreja Nossa Senhora da Conceição, em Santa Ifigênia; e a Igreja Nossa Senhora do Carmo, no Brás.
Localizada ao lado da Praça da Sé, a Igreja Nossa Senhora do Carmo já sinaliza que enfrenta problemas de preservação da rua: a lateral está pichada e finas hastes de metal estão espalhadas por toda a fachada para afastar pombos e vândalos. Os maiores desafios são derivados, contudo, do acúmulo da falta de manutenção e de restauro.
O local é um dos três templos religiosos da capital tombados em nível nacional, sendo datado do século 18 e cuja fachada foi talhada por Joaquim Pinto de Oliveira, o Tebas, arquiteto negro que se destacou no período escravocrata. Além do patrimônio arquitetônico, também guarda acervo histórico, que inclui pinturas do frei Jesuíno do Monte Carmelo (do século 18).
As obras mais emergenciais são a recuperação do telhado e a troca da rede elétrica, que não têm previsão, segundo a priora Elisângela Salomon, responsável pelo local, ligado à Ordem Terceira do Carmo. Com o objetivo de transformar parte da igreja em museu, ela admite que gestões anteriores não focaram na preservação e diz que pretende reverter a situação. “A gente tenta, na medida do possível, dos entraves burocráticos, manter o patrimônio vivo.”
Situação semelhante enfrenta a Igreja Nossa Senhora da Conceição, cuja sede atual é de 1910 e funcionou como catedral provisória entre 1930 e 1954. Nela, danos no telhado impedem até tocar o sino. Mais do que isso, as obras de restauro realizadas aos poucos são focadas nas poucas áreas que não correm risco de infiltração. “Voltar a tocar sino pressupõe a total recuperação, até por causa da vibração”, explica o padre Antonio Rui de Moraes.
Na área interna, dois altares passam por restauração, mas a quantidade de intervenções necessárias abarca quase toda a estrutura, incluindo pinturas e o órgão de tubos. Duas capelas da entrada já foram restauradas, mas ficam trancadas por grades para driblar a deterioração.
Pagando a obra em parcelas, os recursos provêm de quermesses, ofertas de fiéis e da doação de parte da renda de uma tenda de pastéis. O padre agora está atrás de recursos públicos e de comerciantes da região. “Todos os monumentos antigos enfrentam esse desafio.”
Aflição
Já a Capela dos Aflitos, de 1774, é o testemunho restante do primeiro cemitério público da cidade. Hoje, enfrenta problemas como rachaduras e queda do reboco, mas continua atraindo fiéis, especialmente de Chaguinhas, santo popular que teria sido morto na forca injustamente.
“É um patrimônio tombado que, daqui a uns dias, não vai ter mais o que restaurar. Os cupins estão comendo tudo. Está praticamente abandonada. Sendo que é um patrimônio tombado, você não consegue entender isso”, afirma Ilth Maria, de 57 anos, da União dos Amigos da Capela Nossa Senhora dos Aflitos. Procurada, a Arquidiocese de São Paulo não se manifestou sobre os casos.
‘Com manutenção, nunca vai chegar nesse estado’
“As cidades brasileiras quase sempre se formaram junto das igrejas ou a partir das igrejas”, diz Nilson Ghirardello, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor do livro A Formação dos Patrimônios Religiosos no Processo de Expansão Urbana Paulista.
No centro de São Paulo, grande parte foi construída no período colonial ou antes da degradação da região, em parte com recursos de fiéis e de organizações, como a Ordem Terceira do Carmo. “Ainda há pessoas que fazem doações, mas isso talvez transite por outras nomenclaturas religiosas.”
A professora do Mackenzie Nadia Somekh avalia que por aqui há menos incentivos para doações do que em outros países, como a França. “A recuperação do patrimônio é cara, requer mão de obra especializada. Temos de pensar em novas formas de financiamento, como o crowdfunding (vaquinha virtual).”
Organizador do livro São Paulo: Cidade e Arquitetura, o restaurador Francisco Zorzete ressalta que as igrejas são “novas” em relação a outras no mundo e não exigem recuperação complexa. “Algumas têm acabamento um pouco mais sofisticado, mas as técnicas construtivas, como taipa, são simples. O complicado é não conservar. Se tem manutenção, nunca chega nesse estado péssimo. Tem de restaurar e cuidar.”