As práticas propostas pela Lei 15.177/2025, que prevê reserva de 30% das cadeiras em Conselhos de Administração de empresas estatais no Brasil para mulheres, representam um sinal verde para conselheiras, incluindo as de companhias privadas, ainda em minoria. Apesar da conclusão, unânime entre as especialistas mulheres ouvidas pelo Estadão, há ressalvas e críticas a algumas lacunas que, segundo elas, poderiam ter sido contempladas pela nova legislação.
A norma é originada do Projeto de Lei 1.246/2021, de autoria da deputada federal Tabata Amaral (PSB), e foi sancionada na quarta-feira, 23, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Ela obriga o cumprimento da cota mínima com recorte de gênero para companhias públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias e controladas, além das demais empresas nas quais a União, Estados, o Distrito Federal ou municípios possuam, direta ou indiretamente, a maioria do capital social com direito a voto.
O texto explica que o cumprimento à obrigatoriedade deve ser progressivo: 10% de reserva de vagas na primeira eleição do conselho de administração, 20% na segunda e 30% na terceira (veja a composição de algumas estatais mais abaixo).
Por exemplo, no caso de um conselho de administração que tenha 10 componentes homens, a partir da primeira eleição ele deve ter nove conselheiros e uma conselheira: a divisão vai para oito homens e duas mulheres na segunda eleição; e sete homens e três mulheres, na terceira.
Das vagas reservadas para mulheres, ao menos 30% devem ser ocupadas por mulheres negras ou com deficiência.
Na lei, a obrigação das cotas não está estendida às empresas privadas de capital aberto, cuja adesão à norma é facultativa. As companhias listadas na B3, no entanto, já têm recomendação para atender a regras de diversidade de gênero nos conselhos de administração conforme orientação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A cota mínima estabelecida neste caso é a eleição de ao menos uma conselheira para o colegiado até 2026.
Presença tímida
Um levantamento realizado e publicado pelo Estadão, em 2024, tendo como base as empresas listadas no Ibovespa (incluindo estatais), apontou que as mulheres ocupam apenas 20,7% das cadeiras de conselho.
Para a coordenadora do Curso de Formação de Conselheiras da Trevisan Escola de Negócios, Glades Chuery, a aprovação da Lei 1.246/2021 representa um passo importante para a “correção de uma desigualdade histórica que, por muito tempo, foi naturalizada”.
“A presença de mulheres nos conselhos ainda é tímida e, na maioria das vezes, decorre de esforços individuais, e não de oportunidades institucionalizadas. A Lei vem justamente para equilibrar esse jogo, criando condições mínimas para que as mulheres ocupem espaços que, historicamente, lhes foram negados, não por falta de competência, mas por ausência de oportunidade real.”
Mesmo que a adesão para as empresas privadas seja voluntária, a mensagem que a lei promove é a de que o futuro da governança passa pela diversidade, criando um efeito de “pressão positiva”, diz. “(É uma) pressão dos investidores, dos talentos e profissionais de mercado, dos consumidores e da própria sociedade civil, que começam a observar com mais atenção quem está apenas ‘cumprindo tabela’ e quem está realmente comprometido com uma liderança mais plural.”
A gestora executiva do Movimento Mulher 360, Margareth Goldenberg, observa que a lei 1.246/2021 segue o exemplo de outros países que já adotaram a medida de reserva de vagas como Noruega, França e Alemanha, que têm cotas de 40% para mulheres conselheiras. Diante disso, a força legal, ainda que temporária, é também necessária no Brasil para acelerar o processo de equidade.
A presença dessas mulheres não pode servir apenas para composição numérica, adverte. “Para que essa participação seja efetiva, é fundamental que elas tenham influência real nas decisões e sejam reconhecidas como vozes estratégicas no colegiado. É essencial que as vagas não sejam preenchidas por indicações políticas, mesmo nas estatais.”
Cofundadora do Instituto Conselheira 101, Jandaraci Araújo é da mesma posição. “É importante lembrar que a sanção da lei, por si só, não garante sua efetividade. É preciso avançar na regulamentação, garantindo que os processos de nomeação sejam transparentes, inclusivos e meritocráticos. Só assim conseguiremos evitar nomeações simbólicas e garantir que a diversidade venha acompanhada de impacto real.”
Fragilidades na Lei
Araújo e Goldenberg também concordam que, mesmo apresentando influência positiva sobre o mercado, a lei ainda tem lacunas.
Goldenberg cita como fragilidade a falta de previsão mais clara de mecanismos de fiscalização do cumprimento da lei. Além disso, a especialista entende que deveria haver a imposição de ações estruturantes para sustentar a presença de mulheres nos conselhos, como programas de formação e cultura organizacional inclusiva.
“Sem esses pilares, o risco é que a ocupação desses espaços por mulheres se limite ao cumprimento formal da cota, sem gerar transformação real na qualidade da liderança e nas decisões estratégicas.”
Já Araújo destaca entre os pontos positivos da lei brasileira a coragem de ir além da perspectiva de gênero e incluir recortes interseccionais de raça e deficiência, além do estabelecimento de metas e prazos objetivos que ajudam na previsibilidade da implementação.
Contudo, indica que a principal fragilidade da lei brasileira está na ausência de uma regulamentação robusta, que detalhe melhor os critérios de seleção, a fiscalização e as consequências do não cumprimento da norma. “O risco é de que a lei seja implementada de forma superficial, com nomeações simbólicas ou até motivadas politicamente, e não com base em mérito técnico e diversidade.”
Ela também considera a necessidade da capacitação institucionalizada e apoio à formação continuada, que ficaram ausentes do documento legal, principalmente nas regiões e setores com menor acesso a programas de preparação.
“A lei é um passo necessário e legítimo, mas precisa ser acompanhada de um compromisso real das instituições em transformar não apenas a composição dos conselhos, mas também suas práticas.”
Cenário nas estatais
Segundo dados publicados pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), o Brasil possui 44 empresas estatais federais e 78 subsidiárias.
Estatais como Petrobras, Banco do Brasil e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) já possuem algum nível de diversidade de gênero na composição dos seus conselhos de administração, seja com a presença de ao menos duas mulheres nesses postos, seja ultrapassando a cota mínima estabelecida pela nova lei de reserva de vagas.
O Conselho de Administração da Petrobras é formado por nove homens e duas mulheres, dentre elas a presidente da companhia, Magda Chambriard. A diretoria, no entanto, tem maior nível de diversidade, formada por cinco executivas e quatro executivos – o que a empresa considera “um marco histórico e inédito”, em nota enviada ao Estadão.
“O Plano de Negócios da Petrobras 25-29 estabelece como meta que 25% das posições de liderança sejam ocupadas por mulheres e 25% por pessoas negras até 2029. Destaca-se que o acesso à Petrobras é de processo seletivo público e hoje a empresa conta com 17,33% de mulheres no seu quadro de trabalhadores”, complementa a companhia.
Já no BNDES, o conselho de administração tem 11 componentes: oito homens e três mulheres. Ao Estadão, o banco informou que uma das componentes é autodeclarada preta. “Dessa maneira, o BNDES afirma que já cumpre a cota de 30% de mulheres entre os conselheiros do conselho de administração. Também observa o texto da lei que determina que, deste total reservado, 30% devem ser destinados a mulheres negras ou com deficiência.” A diretoria da estatal é formada por quatro mulheres e cinco homens.
O Banco do Brasil é o mais avançado em diversidade no colegiado administrativo, com composição paritária de quatro homens e quatro mulheres. “Atualmente, o conselho de administração da instituição já conta com 50% de mulheres, superando em 20 pontos porcentuais o patamar estabelecido pela legislação, percentual alcançado antes mesmo da promulgação da Lei”, ressalta o banco ao Estadão.
Segundo a instituição, no conselho diretor há 45% das cadeiras ocupadas por mulheres, 22% por pessoas negras e duas posições por representantes autodeclarados LGBT+. Desde 2023, a presidência do Banco do Brasil está sob comando de Tarciana Medeiros, primeira mulher a ocupar o posto.
Desmistificar o mercado
Independentemente da força da Lei, é preciso reconhecer que existe uma gama de profissionais mulheres com formação necessária para ocupar os postos nos conselhos, diz a diretora geral do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), Valéria Café.
Segundo ela, existe uma “ideia errada e culturalmente disseminada no mercado” de que não existem mulheres qualificadas para essas posições, mesmo com o aumento de programas formativo de conselheiras, como os promovidos pelo próprio IBGC. Um deles, o Programa Diversidade em Conselho (PDeC), chegou ao ano de 2023 tendo formado mais de 200 mulheres.
Além disso, para que as mudanças de equidade esperadas com a nova lei sejam estruturais, efetivas e aceleradas, é recomendado que as organizações divulguem metas e métricas sobre diversidade em quantidades e prazos definidos, recomenda Café.
“Uma vez que essas metas e métricas estejam atreladas a remuneração variável de todos os gestores da organização e administradores da organização, esse processo se torna mais efetivo.”
A especialista acrescenta ainda que equidade e inclusão nos conselhos é uma questão de integridade, ética e também uma forma poderosa para que as empresas tomem decisões mais qualificadas, seguras e plurais. “Acreditamos desde sempre que é preciso que as organizações tenham uma diversidade de pensamentos e, para que haja uma diversidade de pensamentos, é preciso que as pessoas venham não só de gêneros diferentes, mas de regiões diferentes, de experiências diferentes. Isso é fundamental para uma boa governança corporativa.”