Uma das consagrações da Organização das Nações Unidas (ONU) e que é reforçada pela Constituição Federal Brasileira é o direito à moradia digna. Contudo o que vemos em Mato Grosso é uma realidade um pouco distante desse preâmbulo. A afirmação é do juiz e presidente da comissão de Assuntos Fundiários de Várzea Grande, Luiz Otávio Pereira Marques. Segundo ele a triste realidade dos centros urbanos e da zona rural demostra que este direito não é de fácil efetivação.
“Um simples circular pela cidade demostra o quão grave é a situação, já que grande parte da urbanização se efetivou de forma desordenada, sem nenhum planejamento ou controle estatal. Os moradores desses locais vivem em situação de insegurança, não têm títulos de propriedade, não podem acessar linhas de crédito para realizar melhorias na sua moradia e muitas vezes, não contam com serviços básicos como distribuição de água, energia elétrica e saneamento”, explicou Luiz Otávio.
Tipos de irregularidades
São várias as irregularidades encontradas nesses locais sejam eles rurais ou urbanos enumerados pelo magistrado como loteamentos irregulares e clandestinos – aqueles que não foram executados de acordo com o projeto ou não foram sequer registrados e não têm aprovação da prefeitura;
Invasões ou ocupações consolidadas que são assentamentos de populações de baixa renda inseridos em parcelamentos informais ou irregulares, localizados em áreas urbanas (públicas ou privadas);
Conjuntos habitacionais que são empreendimentos de casas ou apartamentos construídos por companhias, departamentos públicos e que apresentam alguma irregularidade – como a aprovação de projetos, infraestrutura inadequada, construções em desacordo com os projetos, ou com problemas jurídicos.
A necessidade da regularização fundiária
Para tentar evitar uma ocupação desordenada e consequentemente a falta de controle do Estado sobre esses assentamentos, a regularização dessas questões é essencial. “O que vemos é uma desorganização muito grande, seja por inércia do poder público ou mesmo pela falta de controle dos órgãos fiscalizadores. Sem os títulos de suas casas essas pessoas estão sem segurança jurídica alguma. Não podem vender as terras e corem o risco de perder suas construções a qualquer momento”, explicou presidente da comissão várzea-grandense.
Para realizar a regularização de uma área dessas é necessário um trabalho conjunto entre os poderes. Recentemente fora criada, em cada comarca, uma comissão para tratar desses assuntos, pois a regularização fundiária depende de vários fatores, como explicou ou magistrado, como o mapeamento das áreas irregulares – a partir dai é necessário o contato com os moradores destes locais.
Após ter sido feito o levantamento dos números de famílias que estão ocupando a área, habitantes por domicílio; dados dos moradores como emprego, renda e número de filhos em idade escolar; ou se as habitações estão em área de risco como morros, ou próximo a córregos e rios.
“Posteriormente uma análise jurídica é realizada, para saber quais documentos os donos dos imóveis possuem/ou não; há quanto tempo estão mornado no lugar e a quem pertence a área. A partir daqui sabemos se nós teremos que aplicar uma medida judicial ou administrativa. Se optamos por acordos, ou até a reintegração de posse para o proprietário”, concluiu Luiz Otávio.
Comissão de regularização fundiária
A comissão foi criada por meio do Provimento nº 15/2014, da Corregedoria Geral da Justiça de Mato Grosso e possui representantes dos poderes legislativo e judiciário, além de órgãos como o Ministério Público, Defensoria Pública, Ordem dos Advogados, Cartórios Extrajudiciais, Sindicatos dos Produtores Rurais e dos Trabalhadores Rurais e da Associação de Bairros do Município.
As comissões foram criadas tendo em vista que as questões de caráter fundiário envolvem demandas de interesse coletivo e que precisam ser solucionadas pelo Judiciário ou por seus serviços auxiliares de notas e registros (cartórios), delegados ou oficiais de justiça que precisam fiscalizar o direito constitucional. Além disso, também levaram em conta os grandes problemas gerados pela ocupação irregular de terras no estado, como o desenvolvimento econômico e social de Mato Grosso; questões ambientais, amparo à lei de propriedade privada, ao direito de reforma agrária e boa distribuição de terras.
A comissão está vinculada à diretoria de cada foro das comarcas no Estado e prevê o enfrentamento e resolução das questões fundiárias de natureza urbana ou rural, conflituosas ou não, que existem em cada um dos municípios mato-grossenses.
Imbróglios judiciais
“Em cada situação precisamos analisar qual o ‘remédio’ que deveremos usar para resolver o caso. Por isso é muito relativo a questão do tempo: há casos em que na primeira audiência já encontramos acordos e resolvemos ali na hora. Mas há casos que levam anos para se concluir. São medidas judiciais que carecem de perícias em documentos antigos, títulos e medições topográficas e, além disso, são passíveis de recursos nas demais instâncias do judiciário”, explica o juiz.
Ele pontua que a tramitação é lenta, pois depende de outros órgãos, além do judiciário. “Ofícios são enviados, audiências precisam ser marcadas, destas algumas são resignadas, algumas testemunhas faltam então é lento porque há sobreposições de títulos”.
Sem sossego
Com a fala simples e um aperto de mão firme, Antônio Otávio de Campos, de 71 anos, possui as marcas de uma longa vida de lida no campo e na roça. Em suas contas o trabalho duro iniciou aos 12 anos, mas diz que já trabalhava em outras atividades. ‘Seu Antônio’ nasceu e foi criado em uma fazenda a 50 km de Nossa Senhora de Livramento – comunidades tradicionais de São Manoel do Pari. Lá teve seus filhos, mais recentemente seus netos e viu crescer seus irmãos e irmãs, num total de 10.
A terra onde planta mandioca, milho e cria algumas vacas leiteiras foi herdada de seu pai Joaquim Mariano do Nascimento, por volta de 1950. Uma área de 1401 hectares (quase 6 mil Km²) que foi dividida para os dez irmãos. Contudo esta divisão foi a ultima vez que os documentos das terras passaram por um cartório, e desde então, mesmo com a morte de alguns herdeiros e a venda de alguns lotes na região – a documentação ficou congelada. Isso provocou, há cerca de oito anos, uma grande tensão para as famílias que ainda estão no local. “De uns tempos para cá o nosso sossego terminou. Teve vezes que até jagunços contratados ficavam de guarda armados na estrada para não deixar ninguém passar”, disse Antônio.
A dor de cabeça iniciou quando uma das moradoras do local, Miguelina de Oliveira Campos, se organizou com os outros habitantes da Sesmaria – nome da vila onde moram – para regularizar as terras. Por meio de uma solicitação efetuada em 2006 com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Mato Grosso (Fetagri) e o Instituto de Terras do Mato Grosso (Intermat), a regularização fundiária das comunidades começou. Um dos proprietários que havia comprado a área de quatro herdeiros (cerca de 400 alqueires) entrou na justiça e congelou a medição.
“A Intermat chegou a vir aqui uma vez, mas não chegou a medir direito as terras. O novo dono entrou na justiça e a ação ficou parada desde então. Isso já vai fazer oito anos e nenhum juiz veio aqui saber a nossa história”, reclamou dona Miguelina Campos. Em 2007, o processo de medição foi bloqueado e vários moradores receberam um mandado de citação para reintegração de posse a pedido do advogado Bibiano Pereira Leite Neto. Ele alegou que mais ou menos 419 hectares das terras que estavam sendo regularizadas são de propriedade do senhor Leônidas Querubim Avelino, que teria 819 hectares, no total.
Outro morador da região, Antônio Fermino Moraes, explicou que não entendeu a decisão da justiça, pois segundo ele todos sabem na região que Leônidas comprou. “Ninguém está querendo tirar as terras dele, ele está lá desde os anos 80. Mas as terras que o advogado está reclamando, esses 419 hectares a mais, nunca foram dele. São terras nas quais moramos e cultivamos há mais de três gerações e das quais dependemos há anos”, explicou Fermino.
Para os pequenos produtores e que integram a comunidade há muitas décadas, a justiça não chega até o pobre. “Nós não temos direito a voz. Não vi ninguém vir aqui, para saber como nós estamos nos sentindo. Temendo todo dia que alguém venha tentar nos tirar daqui com um bando de jagunços”, comentou Antônio Firmino que também é um dos moradores da área em conflito.
Enquanto a área não é demarcada por peritos e por oficiais de justiça as 13 famílias que fixaram raízes no local se sentem inseguras e temendo uma ‘desapropriação’ ou uma invasão de suas terras.