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Com leveza e personalidade, chá conquista o espaço do cafezinho

Por muito tempo, o cafezinho reinou absoluto como o ponto final de uma refeição em restaurante. Mas uma mudança sutil e sofisticada está transformando a cena gastronômica: chefs de diferentes estilos de cozinha estão elevando o chá quente ao status de estrela do encerramento, com preparos autorais, ingredientes selecionados e histórias que merecem ser contadas.

Não se trata apenas de trocar o café pelo chá, mas, sim, de criar uma experiência que dialoga com a refeição, carrega a assinatura da casa e, de quebra, pode ser mais gentil com quem não quer perder o sono após um jantar memorável.

Uma das faces desse movimento é a transformação de sobras em memória. No Jacó, o chef Iago Jacomussi olhou para as flores e ervas finas que enfeitam os pratos – sempre impecáveis, sempre frescas – e percebeu o tanto que se perdia quando elas não estavam mais perfeitas o suficiente. Junto com Francisco, o bartender da casa, começou a desidratar essas mesmas flores e ervas, adicionando limão e especiarias até criar um blend único.

O resultado é um chá que fecha a narrativa da refeição de forma circular. “Basicamente, aquele chá que o cliente está tomando é feito das ervas que ele comeu durante a refeição inteira”, explica Jacomussi. É storytelling na xícara – e também é desperdício zero.

No Corrutela, o chef César Costa segue caminho parecido. O restaurante produz seu próprio chocolate, do grão à barra, e as cascas do cacau viram um chá de notas sutis e reconfortantes, sem cafeína. “Servir um chá industrializado, de saquinho, seria quebrar a nossa narrativa”, diz Costa.

Para ele, a coerência é fundamental: se a cozinha é pautada pela sustentabilidade, o chá também precisa ser.

Já o chef Rodrigo Oliveira, do Mocotó, criou blends exclusivos que traduzem geografias brasileiras em infusões: o cerrado, com erva-mate, buriti, abacaxi e gengibre (R$ 18,90); o sertão, com chá preto, casca de cacau, camomila, canela e caju (R$ 18,90); e o horta, um chá sazonal feito com o que está disponível na horta orgânica do restaurante.

“Há tempos já olhamos para o café como parte integrante do cardápio e que deve atender aos mesmos requisitos de excelência dos demais ingredientes”, diz Rodrigo. “Mais recentemente vimos que os chás nos dariam ainda mais oportunidades para enriquecer a experiência.”

Assinatura

Essa lógica – de que cada detalhe carrega a filosofia da casa – é o que faz desse movimento mais do que uma simples troca de bebidas. “Enquanto um excelente café fala muito sobre o produtor e o torrefador, um chá desenvolvido na casa é uma assinatura do chef”, diz César Costa. “É o nosso ‘ponto final’ na história que contamos através do menu que servimos.”

Há também uma razão prática – e química – para o chá ganhar terreno à noite. No Miyabi, omakase de Aya Tamaki e Fabio Ota, a escolha pelo chá de arroz tostado que acompanha os petit fours é, antes de tudo, cultural. “Normalmente, no Japão, eles finalizam a refeição com um chá. A gente leva muito em conta o que é feito tradicionalmente”, diz.

Mas não é só tradição. “O chá tem a L-teanina, que provoca relaxamento e melhora o foco, mas o efeito colateral não é igual ao da cafeína. Ele não atrapalha o sono”, explica Aya. “Fora as propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias.” É o tipo de dado que ressoa com quem quer aproveitar um jantar sem passar a madrugada em claro.

No Aizomê, a chef Telma Shimizu oferece chá verde japonês à vontade por R$ 14 e destaca exatamente esse ponto. “Ao final de uma refeição à noite, nem todos querem uma dose de cafeína que comprometa o sono. Oferecermos chás com menos cafeína – ou sem, como o hojicha (chá verde tostado) -, o que agrega muito à experiência”, diz.

Para Telma, não se trata de substituir o café, mas de ampliar possibilidades. “Se no Brasil oferecer o cafezinho a uma visita é um gesto de hospitalidade, no Japão o chá é a bebida que faz esse papel”, compara. A casa trabalha com chás japoneses de qualidade, explicando aos clientes as características de cada tipo – uma forma de trazer para a mesa brasileira o papel que a bebida ocupa no cotidiano japonês.

“Um chá de sachê qualquer um consegue servir”, diz Iago Jacomussi, do Jacó. O diferencial está em apresentar um produto único, que tem história. E essa parece ser a chave do movimento: o chá precisa dizer algo sobre o restaurante, não ser apenas uma opção a mais.

Clássicos

No Make Hommus. Not War, a aposta é no clássico feito com capricho: chá de hortelã ao estilo marroquino, preparado artesanalmente pela casa. É uma forma de trazer autenticidade cultural para o final da refeição, mantendo a coerência com a proposta do lugar.

“Quando pensamos em servir chá, a ideia foi tratá-lo como um ingrediente gastronômico, não como um produto industrializado de prateleira”, resume o chef do restaurante, Fred Caffarena. “Escolhemos folhas inteiras, de origem rastreável e com perfis aromáticos distintos, justamente para que o chá tivesse o mesmo cuidado e qualidade que qualquer prato do menu.”

Ele explica as razões pelas quais esse diferencial é importante: “Em vez de ser apenas uma bebida de encerramento, o chá se torna parte do ritual, trazendo identidade, sofisticação e memória para o cliente”.

Aya Tamaki, do Miyabi, é categórica sobre a importância da qualidade do produto. “Tudo estava excelente, mas se a última coisa que a pessoa tomou foi um chá ruim, a experiência toda acaba sendo comprometida. Do começo ao fim, você tem que colocar qualidade em tudo que oferece”, afirma. É o último sabor, a última memória que o cliente leva. Não dá para errar.

Tendência

Os chefs são unânimes: o movimento deve crescer. César Costa observa que a oferta de chás de alta qualidade já é tendência consolidada na Europa, na Ásia e também nos Estados Unidos. “Naturalmente, esse movimento deve chegar com muita força ao Brasil nos próximos anos. Está alinhado à macrotendência de consumo consciente, de busca por produtos com origem e história”, explica.

Aya Tamaki ainda aponta para possibilidades que mal começaram a ser exploradas por aqui. “Bebidas com chá, drinques com chá, jantares harmonizados com chás. São coisas que ainda não são muito estudadas no Brasil, mas vão crescer muito”, acredita.

Fred Caffarena, do Make Hommus, já está colocando o chá dentro de preparos da cozinha, por exemplo. “O chá não é só uma infusão, mas um ingrediente vivo que pode transformar a experiência gastronômica”, diz. “Uso chá em caldos, molhos e marinadas, trazendo aromas e camadas de sabor que tornam cada prato e cada xícara únicos.”

Estadão Conteudo

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