A delação premiada tem sido, sem nenhuma dúvida, a pauta do dia. Os meios de comunicação em massa, em tempo real, fazem menção a acordos em via de ser homologados, a pactos já formalizados e, por fim, às consequências advindas da utilização desse instituto rico em detalhes, bem como em controvérsias. Como já mencionado em outras oportunidades, a delação premiada apesar de ser também um importante mecanismo de defesa consegue, de uma só vez, despertar amor, por parte de uns, e ódio, por parte de outros.
Bem se sabe que a delação não é algo novo, inédito. Ao revés, tem raízes antiguíssimas. Citando-se aqui, ainda que perfunctoriamente, a título de exemplo, a famigerada Lei 8.072/90 – Lei dos Crimes Hediondos. Entretanto, não se pode negar que foi somente com o advento da Lei 12.850/2013, que trata das Organizações Criminosas, que o instituto ganhou a notoriedade que tem. Tal se deu, tendo em conta a premiação legal, bem como rito procedimental desde as tratativas até a homologação do acordo, que foram, como em nenhum outro diploma normativo, “pormenorizadamente” regulamentados pelo legislador brasileiro.
Contudo, em que pese tenha havido inegável esforço, por parte do legislador, na regulamentação minudenciada do instituto, ainda assim, a cada dia que se passa, novas indagações têm surgido, reclamando, em consequência, da doutrina uma postura mais atenta; tudo para buscar, na medida do possível, o aperfeiçoamento desta técnica especial de investigação que, pelo que se observa, veio mesmo para ficar e provocar uma mudança total de paradigma no processo penal brasileiro.
Destaque-se, na oportunidade, que muito se discutiu, muito se discute e muito ainda se discutirá acerca do tema, haja vista sua natureza multifacetada, que é verdadeiro campo fértil para o debate acadêmico, bem assim para aplicação prática no cotidiano forense.
Deixando-se de lado, porém, algumas questões já trabalhadas pela doutrina, inclusive por este articulista, far-se-á, neste artigo, uma abordagem diferente, pouco explorada, mas nem por isso menos importante.
Tratar-se-á, aqui, do que se pretende convencionar de “Colaboração Premiada Unilateral”. Para tanto, algumas relevantes ponderações e outros tantos esclarecimentos fazem-se necessários ao desenvolvimento do tema.
Pois bem. Do ponto de vista do direito material, teria a delação premiada natureza jurídica: a) no âmbito das organizações criminosas, de causa de progressão de regime (art. 4º, §5º, Lei 12.850/13); b) ainda no âmbito do crime organizado, causa de improcessabilidade, haja vista a possiblidade que tem o Ministério Público de abster-se de oferecer a denúncia em desfavor do agente colaborador (art. 4º, §4º, da Lei 12.850/12); c) no âmbito da lavagem de dinheiro, causa de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito (art. 1º, §5º, da Lei 9.613); d) ainda no campo de incidência da Lei de lavagem de capitais, causa de fixação de regime inicial aberto ou semiaberto (art. 1º, §5º, da Lei 9.613); de forma mais ampla, caracteriza-se, também, como causa extintiva da punibilidade; e) por fim, em todas as situações, não deixa de ser uma causa de diminuição de pena, sempre na proporção de 1/3 a 2/3, com ressalvas, todavia, no âmbito das organizações criminosas, que o quantum de diminuição pode chegar até 2/3.
Analisando-a do prisma do direito adjetivo, Afrânio Silva Jardim, por todos, entende tratar-se de verdadeiro “negócio jurídico processual”, porquanto pode ser celebrado entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público; ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor” (art. 4º, § 6º), confirmando, assim, a natureza jurídica de negócio jurídico processual.
Em teoria, não se nega a natureza jurídica de acordo. Ocorre, entretanto, que na prática, não raras vezes, tal natureza negocial se esfacela, porquanto ao invés de as partes, Ministério Público e Colaborador, chegarem a um denominador comum, equânime, aquele – MP –, por estar em posição de mando, acaba por impor sua vontade a este – Colaborador –, que, no polo passivo de um processo penal, combalido psicologicamente, pouco ou nada pode fazer senão aderir ao pacto cujas cláusulas sequer puderam ser discutidas.
Nesta senda, o acordo, que, em tese, deveria ter natureza sinalagmática, vale dizer, obrigações e benefícios proporcionais para ambas as partes, acaba por se transformar em verdadeiro contrato de adesão, onde o investigado (pretenso delator) deve adequar-se às imposições do parquet, sob pena de não fazer jus ao acordo de delação e, consectariamente, ficar impossibilitado de gozar dos benéficos legais.
Reforçando esta tese, Aury Lopes Jr., ao prefaciar “Barganha e Justiça Criminal Negocial”, de Vinícius Gomes de Vasconcelos, explica que “A superioridade do acusador público, acrescida do poder de transigir, faz com que as pressões psicológicas e as coações (a prisão cautelar virou o principal instrumento de coação) sejam uma prática normal, para compelir o acusado a aceitar o acordo”.[1]
Note-se, assim, que se o acusado ou investigado não concordar com as cláusulas contratuais estabelecidas pelo dono da ação penal, poderá ver-se impossibilitado de celebrar o acordo de colaboração, uma vez que dificilmente o Ministério Público cederá aos “desejos” do pretenso colaborador. Diante deste impasse, em que não há consenso entre as partes (acusado e parquet), como ficaria a situação do polo hipossuficiente da relação processual-criminal?
Ora, parece não haver óbice algum para que, mesmo não havendo acordo, o acusado, caso colabore efetivamente para com as autoridades públicas, obtenha os prêmios legais constantes do art. 4, da Lei 12.850/13. Tal entendimento se afigura viável em virtude da possibilidade prática de o juiz, quando da prolação da sentença, não ficar estritamente vinculado aos termos do quanto pleiteado pelo parquet, no acordo.
Isto porque, não pode o Ministério Público ditar a pena, retirando do juiz a função jurisdicional, e transformando-o em mero “chancelador” de acordos. Ademais, não é despiciendo ressaltar que o órgão de acusação, como pondera Aury Lopes Jr., não é detentor da pretensão punitiva (de aplicar a pena ao caso concreto – função esta do Estado-Juiz), mas, sim, detentor de pretensão acusatória (de postular a pena que entende viável).
Bem assim, casos há em que o parquet, ao celebrar o acordo, compromete-se perante o colaborador a pleitear, por exemplo, o perdão judicial; o que, todavia, nem sempre ocorre, vez que, como já mencionado, o magistrado não é mero homologador de acordos. Merece destaque, outrossim, o fato de que, ainda que não haja qualquer negócio jurídico processual firmado entre o “acusado colaborador” e o Ministério Público, poderá o julgador, mesmo assim, fulcrado no princípio da persuasão racional ou do livre convencimento motivado, conceder-lhe o benefício.
Com efeito, tal se deu em vários processos em que este articulista atuou anos após a deflagração da operação sanguessuga e seus desmembramentos. Citem-se, como precedentes, os autos de número 5000374-27.2011.4.04.7006 da Subseção Judiciária de Guarapuava/PR, processo número 0008321-15.2010.4.02.5001 no âmbito do Tribunal Regional Federal da Segunda Região e inúmeros outros todos decorrentes da mesma operação.
Ressalte-se, mais uma vez, que os premios foram concedidos, mesmo sem a formalização do acordo de delação, e na maioria dos casos, mesmo com a negativa do parquet em entabular o acordo, o que não impossibilitou os acusados de prestarem os esclarecimentos necessários em sede de interrogatório, na presença do juiz, e ao final, terem os mesmos efeitos da colaboração premiada, como perdão judicial ou diminuição considerável da pena.
A toda evidencia, percebe-se que para fazer jus aos benefícios da delação, não precisa sequer haver a presença do Ministério Público. Isto porque, a colaboração premiada (que é um comportamento ativo do acusado no sentido de ajudar as autoridades investigativas) não se confunde com o mero acordo escrito e pactuado entre acusado e MP.
O acordo escrito e devidamente homologado, em verdade, tem apenas o condão de fornecer segurança àquele que colaborou com a justiça, não sendo, entretanto, indispensável à concessão dos prêmios, desde que, é claro, preenchidos os requisitos legais. É dizer, desde que advenham resultados efetivos da atividade do delator/colaborador unilateral.
Por isso a “Colaboração Premiada Unilateral” seria possível mesmo nos casos em que não haja consenso entre acusado e Ministério Público. Nesta hipótese, o colaborador solitário, além de confessar delitos, arriscar-se-ia contando tudo o que sabe sobre os delitos, fornecendo informações relevantes ao desenleio da demanda criminal, e, ao final, tendo sido útil sua participação, estaria o magistrado obrigado a conceder-lhe os benefícios legais, porquanto, mais que um acordo, a delação é um comportamento colaborativo associado a resultados positivos.
Nesta toada, reforçando o quanto exposto, prelecionam Luiz Flávio Gomes e Marcelo Rodrigues da Silva que “[…] nada impede que o acusado ou investigado colabore com a justiça, independentemente de acordo firmado com o Ministério Público, nos termos dos artigos 13 e 14 da Lei 9.807/99 (lei de proteção a vítimas e testemunhas). Por isso, a colaboração (que não se confunde com o “acordo” de colaboração da Lei 12.850/13) é um direito subjetivo do réu, porque uma vez preenchidos os requisitos legais, e inclusive as circunstâncias objetivas e subjetivas do caso concreto, previstas na Lei 9.807/99, terá direito aos benefícios da colaboração, independentemente de homologação judicial ou mesmo acordo escrito juntamente com o Ministério Público […]”
Na mesma linha de intelecção, emprestando validade aos argumentos até aqui expendidos, Afrânio Silva Jardim, ao interpretar o parágrafo 2° do artigo 4°, da Lei 12.850/13, preleciona que:
Tendo em vista que a nossa proposta busca “recuperar” o princípio constitucional da individualização da pena e preservar um sistema jurídico que não impeça a garantia, também constitucional, de o juiz decidir segundo o seu convencimento, julgo caber aqui técnica da interpretação conforme a constituição. Assim, podemos entender que tal defeituosa regra estaria permitindo ao magistrado, desde que haja postulação neste sentido, a concessão de perdão judicial ao réu (na sentença final), mesmo que não exista o acordo de cooperação, mas a cooperação tenha se efetivado por “delação unilateral” do réu, conforme ocorre nas diversas leis anteriores à Lei 12.850/2013. Tais leis regulam prêmios ao “delator”, sem prévio acordo com o Ministério Público ou com a autoridade policial. (sem destaque no original)
Destarte, como se percebe, não poderá o magistrado, ao analisar a colaboração uniliteral efetivamente prestada pelo acusado, deixar de lhe premiar, ao argumento de que, por não haver um acordo de colaboração escrito e homologado judicialmente, são incabíveis os benefícios.
Como consectário, tem-se que em hipótese alguma uma colaboração eficaz, cuja aptidão eficacial restou comprovada in concreto, poderá ser convertida, pela via da distorção hermenêutica, em simples confissão, vale dizer, em mera atenuante genérica, pois que a atividade e empenho do acusado nesta hipótese (mera confissão), nem de longe se comparam àquela (colaboração premiada unilateral). O mesmo ocorre também com os prêmios, que, na mera confissão, são ínfimos, se comparados à “colaboração unilateral”.
Vê-se, assim, que a simples confissão, como atenuante genérica que é (art. 65, III, b, do CP), levada a efeito na segunda fase da dosimetria penal, por ficar única e exclusivamente ao alvedrio do julgador, não tem um quantum mínimo ou máximo especificado em lei. O réu confesso, como se nota, fica à mercê do puro subjetivismo do magistrado, numa total insegurança jurídica.
O mesmo não ocorre na colaboração premiada unilateral, porquanto, restando comprovada a obtenção dos resultados previstos em lei, em decorrência da
colaboração efetiva, teria o colaborador, independentemente da celebração de acordo, assegurada a obtenção dos seguintes prêmios legais, a saber: a) do perdão judicial; b) da redução, em até 2/3 (dois terços), da pena privativa de liberdade, ou, ainda, c) a possibilidade de conversão da pena privativa de liberdade por restritiva de direito.
Essas possibilidades, é bom que se frise, são admitidas em sede doutrinária. O ideal, todavia, é que fosse acrescentado um novo parágrafo no art. 4, da Lei 12.850/13, a fim de positivar o que doutrinariamente já se afigura viável, trazendo-se, assim, para o campo legal aquilo que já se sustenta doutrinariamente.
Como sugestão, a regra poderia assim dispor: “tem direito aos prêmios previstos nesta lei o acusado que, mesmo sem ter firmado acordo, colabora efetivamente com as investigações ou processo judicial, e, de sua atuação, advenham os resultados previstos nos incisos do art. 4º.
Em conclusão, tal medida seria mais acertada, tendo em vista que se daria, com ela, mais segurança ao colaborador unilateral que, mesmo sem “instrumento contratual” algum firmado com as autoridades investigativas, teria resguardados os benefícios legais do art. 4º, da Lei 12.850/13.
*Valber Melo é advogado criminalista; Doutor em Ciências Jurídicas pela UMSA; Mestrando e Doutorando pela Universidade Autonoma de Lisboa. Especialista em Ciências Criminais; Especialista em Direito Penal e Processual Penal; Especialista em Direito Público; Pós-graduando em Direito Penal Economico pela Universidade de Coimbra. Professor de Direito Penal e Processual Penal da Escola Superior de Advocacia; Membro Associado do IBCCRIM e da Comissão de Direito Penal e Processual Penal da OAB-MT.