O número de casos de malária registrados no Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami, em Roraima, disparou durante o governo Bolsonaro. O aumento consta do relatório elaborado pelo Ministério da Saúde e obtido pela Folha.
Segundo o documento, foram registrados 9.928 casos da doença na região, onde fica a Terra Indígena Yanomami, em 2018. O total passou para 20.393 em 2021.
O relatório ainda aponta que quase um terço dos casos ocorreu na faixa etária de 0 a 9 anos (30%) e que o local de provável infecção que mais cresceu no período foi justamente em áreas de garimpo.
O documento foi produzido após vistoria realizada no Dsei do território de 15 a 25 de janeiro.
No relatório, revelado pela Folha, também são relatadas situações de extrema precariedade nos polos-base dentro de TI Yanomami e na Casai (Casa de Saúde Indígena) local.
São descritas instalações com fezes pelo chão, uso de medicamentos vencidos, seringas orais reutilizadas sem a devida higienização e diversas unidades de atendimento fechadas em razão da falta de segurança, consequência da forte incidência de atividades ilegais na região.
Também há relatos de profissionais de saúde com medo de garimpeiros, além de falta de comida, botijão de gás e equipamentos de proteção para os médicos.
Em mais de uma ocasião, o documento cita que não há a devida separação para atendimento de casos de malária e os de não malária.
Em 2022, foram registrados 11.634 casos, mas o relatório alerta que o número real deve ser muito maior, uma vez que, por dificuldades de logística, "pondera-se que a inserção de dados no Sivep-Malária [sistema de controle da doença] por parte do Distrito pode levar mais de 3 meses, com ainda importante subnotificação".
Em muitos casos, os dados são registrados em documentos de papel e enviados por malote até a Casai em Boa Vista. Lá, profissionais relatam que sofrem com a instabilidade da conexão, o que, por vezes, impede a inserção dos dados no sistema.
Há ainda relatos de indígenas que morreram com sintomas de malária, mas os casos não foram inseridos no sistema, uma vez que a equipe de saúde não dispunha de testes para confirmar o diagnóstico.
"Observa-se uma desestruturação do programa de controle de malária com falta de testagem e tratamento já que as localidades com maior número de casos não têm qualquer atividade de testagem e tratamento, acarretando em um longo período de infecção e adoecimento que contribui para aumento de transmissão e agravamento de casos", diz o documento.
O relatório descreve, por exemplo, a situação de um idoso que estava na comunidade Yaritopy, que, segundo o texto, "está sendo acometida por grande número de casos de malária, mas não há acesso a diagnóstico e tratamento de malária, bem como a qualquer intervenção de saúde".
A solução, diz o relatório, foi levar o paciente de helicóptero até o polo-base Surucucu, o que só aconteceu após dias de sintomas. Só os casos mais graves são deslocados, de acordo com o documento.
O idoso chegou a Surucucu de maca, sem conseguir andar, com sinais graves de desidratação e desnutrição. Quando fez o teste para malária, o resultado foi positivo. No entanto, continua o relatório, o polo-base não dispunha nem do medicamento antimalárico adequado nem de redes contra mosquitos para os pacientes (o inseto transmite a doença).
"A equipe confeccionou botas para aquecer os pés para controle de hipotermia", complementa o texto.
O relatório ainda aponta que, durante o governo Bolsonaro, foi o garimpo que impulsionou o crescimento da malária na região.
As infecções em área indígena passaram de 26,6% em 2019 para 29% em 2022, tendo um pico de 34% em 2020. Já a contaminação em áreas de garimpo passou de 5,2% para 18,3%.
Alexandre Naime Barbosa, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia e médico infectologista da Unesp, disse que a malária é endêmica na região onde vivem os yanomamis há séculos.
Isso porque é uma área de grande concentração de primatas, criando um reservatório da doença. Entretanto, o garimpo potencializou o problema porque ele acaba retirando a cobertura vegetal e aumenta o foco de proliferação do mosquito Anopheles, que transmite a malária.
Com o maior número de mosquitos na região e o adensamento populacional vindo do garimpo, a doença passa a ser transmitida de humano para humano através do mosquito, sem intermédio do macaco.
"A principal necessidade é tirar os garimpeiros. Os indígenas sempre tiveram malária, mas, na dinâmica do ciclo silvestre [quando o macaco é o incubador da doença], eles são mais adaptados. Quando tem a infecção num cenário também de desnutrição, aumenta a gravidade, porque aí ficam imunossuprimidos [com imunidade baixa]", disse.
Para lidar com a disparada nos casos de malária, o COE (Centro de Operações de Emergência) Yanonami, força-tarefa criada no Ministério da Saúde para lidar com a crise humanitária na região, decidiu tratar todas as pessoas presentes no local da doença. Isso inclui tanto indígenas quanto garimpeiros, somando cerca de 50 mil pessoas.
O problema é que a pasta não tem medicamentos suficientes para isso e ainda não se movimentou para comprá-los, de acordo com pessoas ouvidas pela reportagem. O tratamento é feito com uma dose única de artesunato (AS) e mefloquina (MQ) em dose única, que custa cerca de US$ 2 por comprimido, ou R$ 10 aproximadamente.
Além do risco inerente à doença, a demora no tratamento pode fazer com que o problema se espalhe pelo país. Isso porque milhares de garimpeiros deixaram o local espontaneamente diante da expectativa de ação do governo federal.
A doença pode passar de uma pessoa infectada para o mosquito Anopheles, presente em quase todo o Brasil. Assim, o fluxo de garimpeiros para outros locais pode causar surtos em outras regiões.
Outro agravante é que nas regiões onde não há incidência de malária as equipes de saúde não estão necessariamente preparadas para lidar com a doença, o que pode atrasar o diagnóstico e elevar o risco de problemas graves.
Situações como essa aconteceram recentemente na Bahia, Espírito Santo, Minhas Gerais e Piauí. No caso dos garimpeiros, a preocupação maior é com o interior do Maranhão e do Pará, local de origem de grande parte das pessoas que estavam na área.
Para Alexandre Naime, a saída dos garimpeiros sem o tratamento da malária faz com que eles possam levar a doença para outras regiões, agravando o problema.
"É um grande problema porque a doença tem tempo de incubação geralmente até 14 dias, mas pode chegar há meses em algumas condições. Se os garimpeiros foram para região de mata onde há mosquitos transmissores, podem servir de reservatórios da doença. A malária é uma doença historicamente ligada ao garimpo no Brasil", disse.