A barca de Gleyre, A biblioteca mágica de Bibbi Bokken E OUTROS LIVROS
Um livro leva a outro. Sempre acontece. Aconteceu recentemente. No fim de semana, relendo sobre A Barca de Gleyre, de Monteiro Lobato. O livro “tijolada’, adjetivado por Lobato por suas setecentas e tantas páginas que reúnem mais de 400 cartas escritas de 1903 a 1944. É um epistolário entre ‘Juca’ e Godofredo Rangel que trata especialmente sobre literatura e criação artística.
A bordo de A barca de Gleyre, deixei o barco correr… Não à deriva. Livros do gênero epistolar como remos. Lembrei-me de Cartas a Theo, de Vincent van Gogh, livro que me acordou para esse gênero literário. Lembrei-me de Carta ao pai, de Kafka; de As cartas de Capistrano de Abreu, de Fernando Amed, que desenham o Brasil e a missão do historiador; Veio à mente Postais a Mário de Andrade, organizado por Marcos Antonio de Moraes; Cartas da Biblioteca de Guita e José Mindlin, escritas entre os séculos XVII e XX que juntas desenham atos de uma peça chamada Brasil.
A bordo de A barca de Gleyre, lembrei-me das mais de cem cartas recebidas de Desidério Aytai (parte delas publicadas no livro Desidério Aytai e a etnografia Nambiquara), húngaro que se abrasileirou após a II Guerra Mundial; das cartas de Claude Lévi-Strauss que traziam suas impressões sobre minha escrita Nambiquara. No percurso da viagem, cheguei à A biblioteca mágica de Bibbi Bokken, de Jostein Gaarder e Klaus Hagerup. Livro feito de cartas, como os citados aqui. Os primos Berit Boyum e Nils Boyum usam um único caderno, onde ambos escrevem um para o outro, possibilitando acompanhar o histórico de suas correspondências.
Foram as crianças Berit e Nils quem me inspiraram a passar a escrever para minha mãe Wilma utilizando um único caderno, a viajar do Rio a Cuiabá; de Cuiabá ao Rio. Deixei as cartas de formato tradicional para usar outro formato, nada usual.
Nossa correspondência no caderno vermelho de capa dura ganhou um nome: ‘Livro das cartas’. Nele escrevi: “Assim, também inspirado do ‘Livro de cartas’ de Jostein Gaarder, teremos algumas normas a cumprir”, escrevi na primeira carta. Ei-las: 1) É permitido mentir, na medida em que uma de nós não perceba que está lendo uma inverdade (melhor do que a palavra mentir); 2) Não repassar o ‘Livro de cartas” a terceiros, pois podem descobrir nossos segredos; 3) O ‘Livro de cartas’ deve ser encaminhado às donas pelo menos uma vez por semana.
Existiu de 21.01.2005 a 03.01.2008. Como duas crianças, eu e mamãe reproduzimos a experiência de Berit e Nils, impingindo uma nova modalidade ao secular hábito de troca de cartas. Em sua última carta, a caligrafia denunciava seu estado de saúde. Foi no dia 12 de novembro de 2007. Depois dessa carta, uma última carta, de minha autoria, datada de 3 de janeiro de 2008. O ‘Livro das cartas’ não retornou a Cuiabá pelo correio e não chegamos a utilizar todas as páginas. Talvez as páginas em branco continuem a dizer coisas sobre nós duas…
A Barca de Gleyre me levou à A biblioteca mágica de Bibbi Bokken que me levou ao ‘Livro das cartas’. Um livro sempre leva a outro livro, páginas misturam-se ressignificando memórias, sentimentos. As páginas em branco trazem muitas saudades.