Mais ou menos por esses dias, só que em outubro, tinha a certeza de que tudo seria diferente. Depois de tanto trabalho, eu decididamente merecia. Só eu sei o que tive de passar nesses 20 anos. O que tive que fazer nesses 20 anos. E só eu sei o quanto gastei nesses 20 anos. Eu tinha absoluta certeza de que chegaria ao lugar que eu tanto sonhei. Ensaiava várias e várias vezes o discurso durante o dia. Ensaiava mentalmente mesmo. No meio de uma reunião. Durante um almoço. Fazendo uma viagem. O poder nos abre portas incríveis. Nunca ninguém transformou tanto o nosso lugar quanto eu fiz. O tanto de gente que eu atendi. O tanto de gente que eu ajudei. O tanto de gente que eu confortei. Nunca deixei de atender um telefonema. Não tinha jeito. Meu sucesso era certo. Como diria Cícero, A gratidão não é apenas a maior das virtudes, mas a mãe de todas as outras. Me desconcentro. Alguém tenta puxar meu lençol.
– Solta isso, filho da puta! Você sabe quem eu sou???
A fome começou a bater. Claro. Somos humanos. E com nós, os humanos, nem sempre 2 mais 2 são 5. Nem sempre é certo, é certo. Milhares de Judas é o que somos. Meu mundo encantado desabou. Recebi milhares de punhaladas. Fui abandonado até por quem me proporcionou tudo isso. Às vezes precisamos passar por uns maus bocados para valorizarmos o dom da vida. Para valorizarmos um salvador. Escutava meu estômago roncando. Somos 5 homens, com 3 camas. Sempre fui esperto. Tem uma goteira bem em cima do meu colchão. Assim ninguém quer dormir comigo. Nem lembro direito dos meus netos. Sinto mais falta é da bajulação. Do domínio. Caminhar nas ruas e sentir a admiração do povo. O pior de tudo é ver os outros cagando na latrina. É uma privada daquelas que tinham no Verdão, que tinha apenas o local para colocar os pés, e depois era só agachar. A fome perturba os pensamentos. Se esse preto pegar meu lençol de novo, vou dar uma facada nele.
Pam! Pam! Pam!
O barulho do pedaço de pau batendo no pedaço de ferro soou como uma oração para meu espírito.
– Olha aí a marmita de vocês. E você, hein, doutor? Falou que ia sair rápido. Que era isso. Que era aquilo. O teu chefinho te largou na mão, meu bem, já estamos em abril. Meu maior prazer é ver a tua cara todo dia.
O policial joga minha marmita no chão. Pego rápido antes que os outros a peguem. Aqui na cadeia é assim. Tudo é aproveitado. Menos o tempo. Estamos no mês de abril. Minha filha sempre diz que vai passar rápido. E eu digo: você não imagina como o tempo demora a passar aqui dentro.