Opinião

CANTO OCULTO

Tem um pássaro piando. O som de seu lamento entra pela janela. Nada anormal, não fosse agora 22 horas de uma quarta-feira. Dia de futebol na TV e metade da semana que só foi até quinta. Na sexta os trabalhadores descansaram. Era o seu dia. Feriado.

E o pássaro piando no quadrado cercado de janelas de mais de 12 andares. Não dá para identificar onde ele está.  Piando.

Pau-sa-da-men-te.

Intermitentemente.

Periodicamente.

É o som da vida insistente ecoando entre cimento, pastilhas,  vidro, alumínio e poucas plantas. Espalhadas em alguns parapeitos procuram os raios solares que, dependendo da época do ano, passeiam fazendo desenhos nas paredes e diversificando a intensidade e a tonalidade da luz que ilumina os dias. Pela janela.

Assim como chamou a atenção de um, certamente, o piado irritará a outros. Considerarão um incômodo o som persistente.

Bonito, pungente e, por que dá essa impressão, doído.

“Será que não dá para fazer esse barulho parar? Está me irritando. É pior que o bebe chorando ou o cachorro latindo. Com esses a gente já se acostumou. Mas só durante o dia.”

Parte dos ocupantes adjacentes nem o notará, abafado pelos motores dos ares condicionados e filtrado pelos vidros das janelas fechadas. Elas isolam o ar fresco que teima em encanar pelo alto, vindo do céu.

O que se vê é um buraco escuro desenhado pelo recorte das quinas dos edifícios colados em desalinho.

Até agora a lua não deu o ar de sua graça cruzando o exíguo espaço. O que pode ou não acontecer, de acordo com o traçado do satélite em seu percurso anual.

Será necessário um longo tempo para acompanhar esse possível movimento lunar. Ele ampliaria os elementos cenográficos da paisagem que compõe o visual.

Um fator a ser observado e acompanhado. Na torcida para que ocorra a noite quando poderá ser mais notado do que durante o dia.

Paciência é a alma da compreensão do quadrado com piso de concreto de passagem para a garagem.

Até nesse horizonte limitado há poesia.

O piado do pássaro.

Que agora passou.

O dono cobriu sua gaiola.

Simples assim.

Parou.

Resta o silêncio. O rugido dos aparelhos de ar condicionado. O som de algumas TVS bem lá no fundo. Fazendo a noite cair na sua monótona rotina.

Como acontecerá depois do final de semana, quando retornar o dia-a-dia após mais um feriado prolongado. Um dia, um novo dia, um pio mais pios e o silêncio, bastando cobrir a gaiola. A vida seguindo em frente pelo quadrado de céu.

Gaivotas cruzam em bando espaço exíguo de fim de tarde, já cinzento. Seguem na mesma direção. Algumas voam mais baixo, outras, mais alto. Vão rumo sul. Livres, velozes e soberanas.

Abaixo, o silêncio do pássaro só é notado por quem dias antes, o escutou cantar seu lamento.

Valéria del Cueto

About Author

Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Essa crônica faz parte da série “Ponta do Leme”, do SEM FIM... delcueto.wordpress.com

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