Paleontólogos brasileiros questionam a legalidade da obtenção de um fóssil brasileiro que foi tema de um estudo publicado na prestigiada revista “Science” desta quinta-feira (23). O fóssil, que levou à descrição de uma nova espécie de cobra que tinha quatro patas e viveu no Brasil há mais de 120 milhões de anos, encontra-se atualmente na Alemanha. Questionados pelo G1, o autor do artigo e o museu onde se encontra o artefato não deram mais detalhes sobre como ele teria chegado à Europa (veja mais detalhes abaixo).
Segundo os estudiosos brasileiros, a peça, originária da Formação Crato, na Bacia do Araripe, no Ceará, pode ter sido retirada de maneira ilegal do país e levada para a Alemanha, onde está abrigada no Museu Bürgermeister-Müller, na cidade de Solnhofen.
Eles alegam que os autores do artigo científico reconhecem que a peça analisada é originária do Brasil, mas afirmam que eles não seguiram normas exigidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq, para estudos de fósseis achados aqui.
"Informações importantes quanto à origem do fóssil são deixadas de lado para que o autor não seja incomodado por nós brasileiros quanto à origem do fóssil descrito", afirma Antônio Álamo Feitosa, diretor científico do Geopark Araripe, local onde o fóssil foi encontrado, segundo o artigo.
Felipe Chaves, chefe da divisão de proteção de depósitos fossilíferos do Departamento Nacional de Produção Mineral, órgão do Ministério de Minas e Energia que poderia autorizar a exportação de um fóssil, garante que não foi concedida permissão para este objeto desde que o departamento tem essa atribuição (2006).
"A peça saiu do Brasil sem a anuência do DNPM", garante. Mesmo se tivesse saído do país antes de 2006, dificilmente seria por meios legais, já que, desde 1942, a comercialização de fósseis é restrita por lei por serem considerados bens da União. "Acreditamos que a saída desse fóssil tenha sido ilícita, por descaminho", diz Chaves.
A descrição do fóssil foi publicada nesta quinta-feira (23) na revista "Science", em artigo assinado por David M. Martill, paleontólogo da Universidade de Portsmouth, no Reino Unido, que já atuou no Brasil, além de Helmut Tischlinger e Nicholas Longrich.
Cobra com pernas
O material apresenta a espécie Tetrapodophis amplectus, uma cobra de quatro patas que viveu no território onde atualmente fica o Brasil, quando ainda existia o supercontinente Gondwana.
A ciência atual não tem dúvida de que lagartos e cobras, em termos de evolução, são espécies muito próximas. O que se tinha comprovado até então é que, com o passar do tempo, os lagartos evoluíram para lagartos com corpo de serpente e patas, e, posteriormente, para serpentes. Agora, o fóssil é uma peça dessa evolução: as cobras com patas.
“É o primeiro fóssil de cobra com quatro patas e cinco dedos. Isso muda a história evolutiva das cobras. Conheciam-se apenas três estágios e agora, eles são quatro”, explica Álamo.
Mas, segundo ele, essa descrição só aconteceu porque, na opinião dele, houve desrespeito à legislação brasileira, que desde 1942 proíbe a extração e posterior comercialização desses itens.
No material complementar da "Science", os autores do estudo afirmam que a peça está há décadas em uma coleção particular, que atualmente se encontra no museu alemão.
De acordo com Max Langer, presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia, é provável que esse material tenha saído do país há poucos anos, mas não é possível comprovar. “A gente fica indignado com um negócio desses. É um material que deve ser fantástico. Saiu do nosso país, está depositado fora, estudado por pessoas de fora”, disse.
“A sociedade não tem o que fazer, mas uma vez que o fóssil está fora do Brasil, passa a ficar fora da alçada da Polícia Federal”, disse ele, citando que a PF é responsável por coibir o contrabando de peças.
Felipe Chaves do DNPM acredita que poderia haver repatriação. "Há a possibilidade de repatriação desse fóssil. Como acreditamos que a sua saída do país se deu por descaminho, a primeira medida a ser tomada é a caracterização do delito, via investigação da Polícia Federal. Comprovado o crime de descaminho, e com o apoio do Ministério das Relações Exteriores, o governo brasileiro poderá requerer ao governo alemão a repatriação desse fóssil", explica.
Atualmente, para um pesquisador estrangeiro atuar no Brasil, é preciso apresentar um projeto de pesquisa ao CNPq que tenha parceria com pesquisadores brasileiros. Após análise, o órgão, ligado ao Ministério da Ciência, autorizaria o estudo.
O que diz o autor
O G1 procurou o pesquisador inglês David Martill. Por e-mail, ele disse não saber quando esse fóssil foi retirado do Brasil e levado da Alemanha. “Sou só um cientista que viu um espécime no museu”, afirmou Martill.
Questionado se ele tinha alguma autorização de órgãos brasileiros ou parceria com universidades do país para conduzir a pesquisa, de acordo com as regras do CNPq, Martill explicou que não vem ao Brasil há pelo menos dez anos e que “não precisa de autorização do Brasil para estudar fósseis brasileiros em coleções dos Estados Unidos ou Europa”. “Posso estudar o que eu quero aqui”, completou.
Museu
O Museu Bürgermeister-Müller também foi procurado para informar quando esse fóssil chegou ao local e como. No entanto, o diretor Martin Röper não respondeu aos questionamentos e pediu apenas que a reportagem procurasse Martill.
O CNPq não informou se há pesquisas conduzidas no país com os nomes dos autores do artigo. Apenas afirmou que o órgão “financia projetos de pesquisa em território brasileiro que incluam pesquisadores estrangeiros, desde que estejam mediante acordo de cooperação internacional com instituições brasileiras” e que “não é da competência do CNPq autorizar e fiscalizar a exportação de fósseis descobertos no Brasil”.
Já a revista “Science” informou que os autores abordaram questões sobre a proveniência do fóssil dentro do material suplementar do artigo, o que foi considerado suficiente para a publicação do estudo. “Não temos informações sobre como foi coletado ou por quem, mas ficamos satisfeitos com as provas científicas dos autores, de que o material foi retirada de um sítio [arqueológico] brasileiro”, informou a revista por e-mail.
Pterossauro
O Geopark Araripe tem uma área de 3,7 mil km² e abrange seis cidades cearenses. A região era considerada área de proteção ambiental desde 1997 e, em 2006, foi integrado à Rede Mundial de Geoparques, iniciativa da Unesco, agência da ONU para educação, ciência e cultura, com a União Internacional de Ciências Geológicas. O objetivo dos geoparques é preservar áreas naturais que tenham um rico valor geológico e paleontológico.
Mas isso não impediu que, no ano passado, uma operação da Polícia Federal desmantelasse uma quadrilha internacional que roubava da Chapada do Araripe fósseis raríssimos para revenda no exterior, como um esqueleto completo de pterossauro, réptil voador que viveu há cerca de 100 milhões de anos.
O material foi apreendido e entregue para pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP). A investigação revelou que a remessa interceptada na França tinha como destino final os Estados Unidos. Mais especificamente, um museu particular.
Fonte: G1