Eu Queria Ser Cássia Eller – Uma Biografia (Harper Collins Brasil), escrita pelo jornalista Tom Cardoso, se beneficia de algo que pode ser vilão ou aliado dos biógrafos: o tempo. Vilão se, ao passar, levar consigo detalhes importantes nas lembranças da vida do biografado. Aliado se, ao passar, acomodar feridas e traumas – e soltar a língua dos entrevistados.
O livro de Cardoso avança pouco em relação aos fatos já narrados em A História de Cássia Eller – Apenas Uma Garotinha, de Ana Claudia Landi e Eduardo Belo, de 2005, o primeiro a mergulhar na vida e carreira de Cássia, quatro anos após a morte da cantora.
Por outro lado, passados mais de 20 anos dessa perda precoce (ela nasceu em 10 de dezembro de 1962 e morreu em 29 de dezembro de 2001), amigos, produtores e ex-empresários da cantora se sentiram muito mais à vontade para falar, por exemplo, sobre questões como o vício de Cássia Eller em cocaína, no qual o jornalista apoia boa parte de sua narrativa.
Cardoso entrega, e se vangloria disso, o nome do traficante que abastecia dez entre dez estrelas da música brasileira nos anos 1990 e 2000. Informação que, segundo narra o livro, um delegado oportunista queria arrancar a todo custo dos amigos da cantora – e não conseguiu. Mesmo jogo cruel que fizeram 20 anos antes com a morte de Elis Regina (1945-1982).
Cássia Eller teve quatro paradas cardiorrespiratórias em uma clínica na zona sul do Rio de Janeiro em 29 de dezembro de 2001. Vale lembrar que, muito posteriormente, um laudo do IML apontou que não havia menção à cocaína no resultado do exame realizado no corpo de Cássia.
Ana Carolina
Tom Cardoso traz também fatos que soam hilários, como o dia em que Cássia Eller supostamente se negou a abandonar a jogatina e outros baratos que curtia com seus músicos na luxuosa suíte de um hotel para atender a um pedido da cantora Ana Carolina que a esperava à beira da piscina.
Outra curiosidade: Cássia Eller teria sido obrigada a gravar a balada Palavras ao Vento, de Marisa Monte e Moraes Moreira, no álbum Com Você… Meu Mundo Ficaria Completo – e hoje é a canção mais ouvida da cantora no Spotify.
Cássia jamais a cantou ao vivo, nem mesmo quando os autores foram assistir à turnê do disco.
O livro se contradiz sobre quem teria feito Palavras ao Vento passar goela abaixo de Cássia. Ora dá a entender ter sido Nando Reis, produtor do álbum, ora Leonardo Netto que, na época, era empresário tanto de Cássia quanto de Marisa.
Tudo indica que Nando e Netto não foram ouvidos pelo autor sobre o episódio – e essa mesma falha se apresenta em outros momentos do livro. Há pouco espaço para a contra-argumentação dos acontecimentos narrados.
Drogas e rusgas entre cantoras da MPB, obviamente, fisgam o leitor e ajudam a divulgar a biografia. Entretanto, quem espremer o livro vai descobrir que Eu Queria Ser Cássia Eller – Uma Biografia é mais saboroso quando mostra a história de uma cantora excepcional que se negou a vestir a fantasia de diva da MPB. Cássia, literalmente, rasgava o figurino de grife e coçava um saco imaginário para quem quisesse domá-la.
Divas
Poucas cantoras brasileiras alcançaram de fato o posto de diva da música popular brasileira de maneira natural. Elis Regina (1945-1982), Gal Costa (1945-2012) e Maria Bethânia ascenderam ao andar mais alto. São a santíssima trindade. E, até hoje, nada ameaçou esse reinado. Não na mesma altura.
Nana Caymmi (1941-2025), que sempre primou pelo repertório e fez discos aprimorados, conheceu o sucesso popular com quase 60 anos, em 1998, quando lançou Resposta ao Tempo. É diva entre os músicos e especialistas, mas não para o soberano público. Simone é diva para o público, mas nunca foi unanimidade de crítica – além de ter carreira mais irregular do que Nana.
Da geração posterior a elas, Marisa Monte, com talento, distância da imprensa, projetos grandiosos e alta dose de marketing, consegue aproveitar o posto. Maria Rita, já nos anos 2000, recebeu tratamento parecido ao de Marisa quando foi lançada pela gravadora Warner. Anos depois, em entrevista ao Estadão, afirmou que tudo aquilo era mentira e que “nunca fui aquela menina fofinha” do cool jazz de seus dois primeiros e excelentes álbuns. Caiu no samba e hoje parece um tanto quanto perdida, sem nenhum lançamento inédito desde 2022.
Cássia lutou para não ser essa garotinha. A biografia narra acessos de fúrias, fugas de compromissos profissionais e sua batalha para poder cantar blues e rock como se estivesse nos inferninhos de Brasília, onde começou a carreira. Queria ser popular, mas não pagar o preço dado por empresários, produtores e executivos de gravadoras.
Peitos
No auge da fama, chamada para se apresentar no Rock in Rio, entrou de regata, bermudão e chinelos no palco – seu figurino predileto. Mostrou os peitos para o establishment. Fez um dos melhores shows de sua carreira. Um recado claro. A ordem das coisas é que deveria se adaptar a Cássia. O final é conhecido e doloroso. Cássia sucumbiu à pressão de ter de ser alguém dentro de uma sociedade na qual não desejava se encaixar.
Eu Queria Ser Cássia Eller – Uma Biografia deve ser lida com cuidado. Para que não seja apenas palavras ao vento, é preciso mirar na essência da biografada. Tudo o que Cássia Eller não precisa é de novos rótulos ou de uma nova Ana Carolina a esperando à beira de uma piscina.



