Cidades

Biblioteca pública para cegos reúne 2 mil livros no DF

Quem ultrapassa as portas da Biblioteca Dorina Nowill no Distrito Federal logo entende que ali a regra de manter silêncio não faz o menor sentido: dez voluntários se revezam de 8h às 17h para ler em voz alta para cegos. As estantes abrigam mais de 2 mil livros, e os preferidos do público são clássicos de Dante Alighieri, Machado de Assis, Guimarães Rosa e José de Alencar, além de contos de fadas. O espaço funciona na CNB 1 de Taguatinga e recebe até 50 deficientes visuais todos os dias.

Sete servidores e 30 voluntários atuam no local. Os deficientes visuais têm acesso ainda a aulas de reforço, fotografia, informática, dança e braile. Fundadora do estabelecimento, a professora aposentada Dinorá Couto Cançado conta que o trabalho impacta diretamente na vida dos usuários.

“Em alguns casos é como se praticamente a pessoa recuperasse a vida. Temos caso de cego 20 anos fechado em casa, esperando a morte chegar. Ele chegou à biblioteca, nos três primeiros dias achava tudo feio, e hoje é superapaixonado. Retomou os estudos, fez o ensino médio, passou no vestibular e agora está fazendo a faculdade. A cultura permite essa inclusão social. São vários retornos à vida em todos os sentidos. Vida de trabalho, vida de casamento, vida afetiva, vida profissional, vida de estudos”, afirma.

O aposentado Nivaldo Alves dos Santos, de 66 anos, conheceu o espaço por insistência de um amigo há 11 anos. O idoso começou a perder a visão em um acidente de trabalho, depois de um cavalete da oficina mecânica ceder e provocar a queda de um carro em cima dele.

“Acordei três dias depois no hospital. Isso foi em 1967, 1968. Ainda passei muito tempo com baixa visão, tinha me sobrado 45% do sentido. Só que foi acabando, acabando, e hoje eu só percebo vultos”, conta.

Santos afirma que relutou em ir à biblioteca por ter um certo preconceito. O resultado da experiência de ouvir algumas páginas de Machado de Assis, no entanto, o surpreendeu. Hoje, depois de concluir o ensino médio, ele ajuda outros deficientes a aprenderem braile e cursa o segundo semestre de psicologia.

“Não queria conhecer porque eu, na época, achava muito estranho, nunca tinha tido contato com cego. E lá eu só ia conviver com cego. Eu era, mas eu não ia conviver com esse povo, era como eu pensava. Besteira. Foi bom. Foi como uma volta na vida. Reaprendi tudo. Aprendi o braile, informática, voltei para a escola – foi como se eu fizesse uma reciclagem nos estudos. Tive de aprender tudo de novo, química, geografia, biologia”, narra.

“Eu só queria ficar sentado no sofá ouvindo a televisão, mas então voltei a ser feliz. A coisa melhorou muito, é interessante estar ali, a melhora é espetacular, porque você é ingressado socialmente, culturalmente, está envolvido em uma série de eventos especiais que você frequenta, você vai em tanto lugar interessante. Ainda existe muita barreira, ainda tem um pouco de barreira contra deficiente, ainda existe alguma coisa, mas são coisas que a gente deixa de lado e segue em frente”, completa.

Voluntário há seis anos no local, o psicólogo João Batista Bezerra de Sousa fundou um grupo de terapia que funciona no segundo sábado de todo mês. “Vimos o fortalecimento da auto-estima, das pessoas querendo voltar a estudar. E outro ponto foi justamente pessoas que não conseguiam mais sair de casa, nem para ir a rua, ir ao shopping, e hoje conseguem sair de casa para resolver coisas do cotidiano e até viajar. Algumas tinham medo de tudo.”

O profissional conta que conheceu o trabalho depois de ver alguns dos usuários da biblioteca fazendo uma apresentação musical. Com as atividades, que ocorrem entre 15h e 17h, ele diz sentir estar contribuindo para que muitos se sintam bem consigo mesmos.

“Tinha gente que realmente já estava mal, já tinha passado por médico psiquiátrico, não tinha nem evolução. A força do grupo dinamizou um estreitamento de vínculo. A gente conseguiu criar dentro do grupo uma ideia de pertencimento, e isso fez as pessoas ficarem empoderadas, terem autonomia, quererem sair disso”, explica.

Queixas
A biblioteca surgiu em 1995 dentro de uma escola pública, depois de a Secretaria de Cultura ganhar os livros da Fundação Dorina Nowill e não conseguir encontrar nas outras unidades um espaço para abrigá-los. De acordo com Dinorá, o problema era que cegos “fazem barulho demais”.

“Eu era vizinha da biblioteca pública [onde tentaram instalar a ala para deficientes visuais]. A diretora me perguntou: ‘O que eu faço com esses livros e essas duas cegas? Lá é lugar de silêncio, cego não cala a boca’. Veio a missão, e eu topei. Biblioteca nossa não tem silêncio, é lugar alegre”, afirma.

Depois de dez anos, o material foi transferido para um espaço próprio, no complexo cultural de Taguatinga. A situação, de acordo com Dinorá, não melhorou muito. Por ter nascido dentro de um colégio, o estabelecimento é mantido apenas pela Secretaria de Educação e não tem nem segurança nem vigias.

“Há mendigos em volta, estendendo varal de roupas deles. Ameaçam nos agredir quando a gente reclama. Tem rato correndo em volta. A gente tem vergonha da sujeira, vai cobrar da administração de Taguatinga, e eles falam que, enquanto o convênio não for assinado, não podem fazer nada. Com que segurança a gente trabalha lá dentro?”, questiona.

O governo repassa dinheiro para bancar água, luz e telefone. As outras necessidades são atendidas com a ajuda de doações da comunidade, vaquinhas e o dinheiro arrecadado em um bazar literário anual – cerca de R$ 2 mil.

A administração regional de Taguatinga e as secretarias de Cultura e Educação informaram que vão se reunir para buscar uma solução para os problemas da biblioteca. "Todos os esforços serão feitos para garantir os serviços necessários para o pleno funcionamento da biblioteca."

Fonte: G1

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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