Batizada como Raimunda, moradora do DF que pediu na Justiça mudança de nome para Débora por causa de chacotas (Foto: TV Globo/Reprodução)
Mesmo sabendo dos gastos para mudar todos os documentos, a dona de casa Débora [ela pediu para não ter o sobrenome identificado], de 44 anos, comemora a decisão da Justiça de Brasília de autorizar a troca do nome que ela carrega na carteira de identidade. Ela conta que desde criança sofre chacotas e é excluída de grupos por ter sido batizada como Raimunda. Envergonhada, ela largou os estudos duas vezes para não ter de responder chamadas, já fingiu não ter ninguém em casa quando o porteiro a chamava e evitou conhecer pessoas novas, para não ter que se apresentar.
A mulher, que atualmente mora no Gama com o marido e os três filhos, chegou ao Distrito Federal aos 4 anos. Ela veio do interior do Piauí com a tia e, até então, não via problemas no nome. Os constragimentos começaram quando ela começou a frequentar a escola.
"Quando vim para cá, achei um pouco diferente, porque não conhecia ninguém que tinha esse nome. Quando eu falava na escola, piorou. As pessoas me provocavam, não sei por qual motivo, ficavam com gracinha, ficavam tirando onda na escola. Aquilo me incomodava muito", lembra.
"Quando eu ia dar presença na escola, eles falavam assim: 'poxa, que nome feio esse seu, quem pôs esse nome tinha mau gosto'. Hoje eu rio. Na época eu falava que era nome de santo, mas ainda brincavam e não adiantava. Quando tinha brincadeira de roda, eu ficava de fora, porque meu nome não combinava com nada. Eu ficava chorando. Eram coisinhas simples, que foram me matando."
Débora diz que a tia comentou que trocaria o nome dela se pudesse, mas não tinha intenção de "enfrentar" os pais da garota. Eles haviam escolhido o nome e, naquela época, consideravam o registro de batismo sagrado. Só que, de acordo com a mulher, as gracinhas ficaram mais intensas e "agressivas" à medida que ela crescia. Ela tentou estratégias para esconder a situação, sem sucesso.
"Quando as paqueras começaram, os meninos se afastavam. Diziam: 'a menina é bonita, mas o nome não ajuda, não'. Minhas amigas, em vez de me ajudarem, ficavam me trazendo essas coisas, mostrando os bilhetinhos", lembra. "Eu tive todo nome que se pensar. Fui Lurdinha, Edna. Era qualquer nome que alguém falava, tudo para encurtar assunto. E aí eu tinha que fazer força para não esquecer que era comigo quando alguém falava o nome que não era meu. Foi difícil."
A mulher conta que no final as pessoas sempre descobriam a mentira. Cansada dos questionamentos, ela mesma passou a se excluir e entrou em depressão. Aos 16 anos e já com o apelido de "Dinha", ela decidiu largar os estudos para evitar as chamadas. Pouco depois casou com um homem a quem não amava, mas a "aceitava com aquele nome".
"Casei com um homem feio, de que eu não gostava, sem paixão, sem amor", lembra. "Acho que tinha a ver com o que diziam [de me deixar de lado por eu ser Raimunda]. Tivemos dois filhos, e depois eu me separei."
A dona de casa conta que se sentia para baixo e que procurou terapia. Na rua, segundo Débora, as brincadeiras continuaram mesmo quando depois de ela alcançar a maioridade.
"Havia coisas como 'aí que mora a dona Raimunda, uma Raimundinha?'. E daí iam para piadinhas sexuais, de baixo calão. Aquilo me deprimia, doía em mim", diz.
Anos depois, Débora se apaixonou pelo atual marido e decidiu tentar um novo casamento. A união deu certo, e eles tiveram uma menina. O homem então sugeriu que a dona de casa tentasse alterar o nome pela Justiça. Achando que não havia necessidade, ela deixou a ideia de lado e pensou em voltar a estudar.
A mulher deu início então a um curso supletivo, mas viu tudo desmoronar quando a professora de português se recusou a receber um trabalho porque ela assinava como "Dinha". "A professora falou bem altão, espalhando, não foi discreta. Nem para me chamar no cantinho e dizer que eu tinha de usar meu nome. Que nada. Voltei para casa chateada, chorando e parei de estudar de novo. Essa foi a gota d'água para mim."
Há três anos e já com os filhos "grandes" [26, 24 e 12 anos], Débora procurou a Defensoria Pública e deu início ao processo para mudança de nome. Ela conta que já nem tinha mais esperanças de poder fazer a alteração e diz ter ficado eufórica com a notícia de que o pedido foi deferido.
"Eu até achava que não ia dar em nada, que achavam que não tinha importância. Como com isso não prendia ninguém, não dependia de nada, ninguém ligaria para isso", ri. "Eu pensava: 'será que vou morrer com esse nome horroroso?'. Mas agora deu certo. Tudo isso me afetava muito emocionalmente. Estou feliz, graças a Deus, estou bem. Eu me sinto mais segura, mais animada, mais eu. Estou feliz, me vejo capaz de transformar, fazer o que não fiz antes agora. Estou disposta a tudo. Estou querendo voltar a estudar e quero montar um salão de beleza."
Segundo a dona de casa, toda a família apoiou a decisão – inclusive os pais, que já são idosos. "Todo mundo ficou feliz. Amigos me deram parabéns, me abraçaram. Eu acho que a gente tem que correr atrás dos nossos sonhos, quando algo incomoda a gente tem que fazer o que melhora."
Inspiração e mudança
A mulher conta que escolheu o nome Débora por causa da admiração que tem pela atriz Débora Bloch e da beleza que vê na também atriz Deborah Secco. "Naquela época eu deixei as coisas me pegarem, acertarem em cheio no meu emocional. Então, quando fui ter vontade de viver assim, tirar manchinhas da pele, ficar arrumada, vi que a vida é tão mais fácil. Começou a abrir novos horizontes. Mas o nome continuava, e eu pensava: 'isso não vai dar certo'. Aí lembrei delas e pensei no que eu queria ser."
Juiz da Vara de Registros Públicos, Ricardo Daitoku conta que qualquer pessoa que passa por situações de sofrimento por causa do nome pode pedir a mudança. O procedimento é regulamentado pela Lei dos Registros Públicos, que entrou em vigor em 1976. Um dos dispositivos da norma diz ainda que, entre os 18 e 19 anos, independentemente de qualquer tipo de justificativa, é possível fazer a alteração com o fundamento de que o nome não foi escolhido pelo dono, e sim pelos pai.
De acordo com Daitoku, não há uma faixa etária na qual haja maior número de pedidos para mudança de nome. Há ações que incluem desde bebês até idosos. São cerca de 30 solicitações por mês. Parte delas é de transexuais.
Quando a alteração é autorizada, é necessário trocar muitos documentos. O registro de nascimento é o documento que vai guiar todos os demais. Com isso, tudo precisa ser modificado depois. Se a pessoa tem imóvel, deve ser feita também averbação do novo nome no registro imobiliário, explica o juiz.
Fonte: G1