Circuito Entrevista

‘Às vezes vemos nossos corpos como eles não são’

O Brasil é o segundo país do planeta onde mais são realizadas cirurgias plásticas. São 200 mil procedimentos clínicos invasivos a cada ano. Só os EUA superam o número. Entre esses, a lipoaspiração é a mais procurada. De acordo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde, a média de mortes oficiais é de apenas oito por ano. Mas esses são números notificados como decorrentes de cirurgias plásticas e não incluem mortes ocorridas por sequelas trazidas por procedimentos realizados por esteticistas ou não cirurgiões, como é o caso do médico Denis Furtado, o Doutor Bumbum, que operava em seu apartamento, numa área nobre do Rio de Janeiro e cujas complicações decorrentes do procedimento acabaram por levar à morte a bancária Lilian Calixto, domingo passado. A psicóloga clínica e psicanalista Evelyne Podolan explicou que muitas vezes as pessoas começam a se enxergar de maneira distorcida, como elas na verdade não são. Muito magras, muito gordas ou com distorções que muitas vezes sequer existem aos olhos de outras pessoas. Ela é a entrevistada da semana do Circuito Mato Grosso.

CMT: Existe uma linha ou uma margem do que é uma mera vaidade de uma obsessão da beleza?

Evelyne Podolan: Na verdade não existe uma linha nem uma teoria. Vai uma questão de reflexão mesmo da pessoa em pensar: eu realmente preciso desta cirurgia, por exemplo? Dessa vaidade? Porque a pessoa se cuidar é diferente de ela ser extremamente vaidosa. Quando uma pessoa se torna extremamente vaidosa, talvez também – e não é em todos os casos – isso comece a gerar dificuldades para essa pessoa. Alguns tipos de dificuldades. Falta de aceitação. Às vezes nem é em relação ao exterior, mas ao interior. Então, a pessoa tem que ter um nível que ela mesma tenha que fazer uma autoavaliação.

CMT: Então isso é construído por essa pessoa ao longo da vida?

E.P.: Isso pode ser construído ao longo da vida. Mas existem questões externas. Isso a gente não pode negar. Existe hoje toda uma economia que é totalmente feita para isso. As questões políticas e sociais. A gente não pode dizer que um ser humano não é influenciado por essas questões. Há quem tente ser menos influenciável por essas questões.

CMT: Você já atendeu casos assim no consultório?

E.P.: Sim. É um transtorno que a gente chama de dismórfico. O paciente começa a se olhar no espelho e se vê de outra forma. E podem existir aí outros tipos de transtornos ligados a isso. Por exemplo, a anorexia e a bulimia, que são clássicos, e eu acho que todo mundo sabe que está ligado a essa questão de eu ver o meu corpo de uma maneira que realmente não é.

CMT: E o que você costuma ouvir como justificativa dessas mulheres e homens que correm obsessivamente atrás da beleza?

E.P.: Eu acho que não tem uma justificativa. É a forma como a pessoa se vê dentro do mundo. Se essa forma é uma forma real ou irreal, isso a gente vai ter que ver depois. Se ela for irreal, essa pessoa vai dizer o que ela consegue enxergar nesse momento. Às vezes a pessoa é supermagra, tem realmente um corpo muito legal e bonito, esteticamente dentro do padrão de beleza, mas ela não se sente satisfeita com aquilo. Aí pode vir toda uma construção. Tanto social – do meio em que eu estou inserida – quanto pode vir de uma aceitação quando ela era criança. Ninguém é obrigado a seguir, por exemplo, um padrão social imposto. Agora, porque todo mundo tem cabelo liso, até quem tem cabelos crespos tem que alisar os cabelos? Não existe uma imposição, uma obrigatoriedade. Existe uma influência.

CMT: É um lance mais sutil?

E.P.: É. Mas muito forte ao mesmo tempo. Ela vem de forma sutil, mas aquilo é muito forte socialmente. Por uma questão de aceitação.

CMT: Isso seria a participação da sociedade?

E.P.: Isso. A sociedade participa dessa forma. Economicamente, a gente pode pensar. Quantos produtos são desenvolvidos, por exemplo, para um nicho da população de cabelos lisos? Agora a gente tem a valorização da cultura dos cabelos negros. E tem toda a questão da beleza e todo aquele nicho de venda de produtos agora para mulheres que têm cabelos cacheados. Há algum tempo, a gente não tinha isso. Isso vem crescendo de uns três ou quatro anos para cá. As mulheres deixaram de alisar os cabelos, por exemplo, para usar de uma forma como eles eram realmente.

CMT: Até como parte de uma resistência?

E.P.: Exatamente. Hoje em dia, até como um movimento, na verdade, de mostrar para a sociedade que a diferença também é algo bom. E aí a gente entra nisso e em outros padrões. As modelos não podiam ser gordinhas. Hoje em dia há modelos plus size também. Como uma forma de contradição disso. E aí o mercado vem para abarcar todas essas situações. Porque a economia vai investir aonde ela pode. Se eu posso investir nesse ramo que está lançando agora, a gente vai ser influenciado por isso.

CMT: Você acha que esta questão tem um lado mais forte pelo viés econômico? Mais que o social?

E.P.: O que você quer dizer com o lado econômico?

CMT: Por exemplo, daquele ideal de beleza estar sempre vinculado a um certo tipo de produto ou até um certo estilo de vida.

E.P.: Os dois estão juntos. Não tem como dizer que o social e o econômico não andam juntos. Está lá na revista, a fulana de tal. Economicamente ela faz propaganda do quê? Tá tudo junto! Não tem como. A sociedade consome aquilo que pede e a economia acompanha o que a sociedade está pedindo ao mesmo tempo. Por exemplo, a cultura do corpo perfeito. Hoje em dia, passa sutilmente como “vamos ser saudáveis”. Aí vem todo aquele extremo de uso de anabolizantes, porque é saudável ter um corpo atlético, mas por trás daquilo vem o uso de outras formas como, por exemplo, talvez uma cirurgia estética excessiva que não precise. Com a onda dessa questão, domingo passou na televisão uma mulher que fez uma cirurgia até nos dedos dos pés. É uma questão que a gente olha e fala – será que tem necessidade mesmo? Aí é uma questão particular. Tem que sentar com aquele paciente e conversar com aquela pessoa.  E fazer com que ela reflita em relação a isso.

CMT: Falando como leigo agora, não existe um acompanhamento psicológico para quem normalmente faz cirurgias plásticas?

E.P.: Não existe obrigatoriedade nisso. Existe um bom senso, às vezes, do profissional plástico que consegue ver naquele paciente uma queixa irreal e, às vezes, uma fantasia irreal em relação ao corpo, e que fale para ele realmente passar por um tratamento psicoterápico para depois fazer essa plástica. Se realmente ele vai fazer ou não a gente não sabe. Mas isso é uma grande minoria.

CMT: Não tem nada no conselho?

E.P.: Nenhum Conselho de Psicologia nem de Medicina. Sobre cirurgia plástica, não. Sobre cirurgias bariátricas, sim.

CMT: O que leva as pessoas a buscarem obsessivamente a beleza a ponto de não considerar a própria condição física e a vida? Pelos casos que a gente conhece pela mídia, parece que isso nem passa pela cabeça da pessoa.

E.P.: Essa pessoa está tão envolvida nessa questão que ela não se reconhece naquele corpo. E ela quer se reconhecer, mas, muitas vezes, não consegue pensar nos próprios cuidados de saúde mesmo. De procurar um médico que esteja realmente credenciado. Qual a reputação desse médico, verdadeiramente?  Se a gente pensar, é alto o número de pessoas que tem feito cirurgias plásticas com outros tipos de profissionais. Mesmo que sejam médicos, mas que não tenham especialidade. Porque às vezes eu fico tão preso naquilo que eu tenho que melhorar aquela situação. É a oportunidade que me deram, me venderam como algo muito fácil, muito bom, e aí vem acontecendo isso.

CMT: Junto com isso, você acha que não deveria ter um limite, do tipo após um terceiro procedimento o paciente ter que passar por um psicólogo?

E.P.: Não sei se isso funcionaria, na prática.

CMT: Por quê?

E.P.: Eu não sei. Como um médico saberia que o paciente já passou por tantas cirurgias no mesmo local, por exemplo?

CMT: É verdade. Tem essa questão também. Mas se ela confiasse em um cirurgião em específico para fazer aquelas plásticas…

E.P.: Ele pode [indicar] daí por ele mesmo. Mas eu acho que isso não surgiria como uma lei.

CMT: Nem como uma normativa numa sociedade de médicos ou num conselho?

E.P.: Eu acho que seria inviável. Como eles teriam controle disso? Se a pessoa está nessa questão de “eu estou obcecada por uma plástica” e o doutor X não faz, eu vou no Y. Um exemplo. Tem duas partes do corpo caracteristicamente já alteradas. Eu posso, por exemplo, ter feito duas vezes o nariz. A mesma parte do corpo. Lipoaspirações, por exemplo, não ficam marcadas depois de muito tempo. Visíveis. Assim, aparentemente visíveis. Se a gente pensar, as plásticas que ficam mais visíveis são outras e que podem ser feitas mais que uma vez. Uma mulher que bota uma prótese de silicone não vai ficar com ela a vida inteira. Ela troca, daqui a provavelmente uns 10 ou 15 anos. Então ela vai fazer a mesma cirurgia. Até para não existir riscos de saúde. Então isso seria inviável, eu acho.

CMT: Por que uma pessoa então faz uma cirurgia e não para?

E.P.: Se a pessoa está vendo que o corpo não está daquela forma como ela gostaria e ela achou uma forma de chegar a essa questão corpórea, por que não fazer a outra parte do corpo? Ainda mais se aquela parte deu certo e a cirurgia foi bem-sucedida. Isso talvez a empolgue e pode ser uma influência que outras cirurgias possam vir em outras partes do corpo ou até na mesma parte.

CMT: Por que é difícil aceitar as próprias imperfeições?

E.P.: Isso vem da história de cada um. Não dá para te afirmar que as pessoas têm isso ou que as pessoas têm aquilo. Porque isso depende de uma gama de fatores que possam influenciar essa visão que ela tem. Pode vir de quando ela era criança, se ela se sentia a filha mais feia ou a mais bonita da escola. A gente não sabe. Pode vir de uma construção inteira. Porque a autoestima de alguém é formada por algo que ela vê de si mesma e mais do que ela recebe do mundo exterior.

CMT: O que você falaria para as pessoas que se olham no espelho e não gostam de como se veem ou até para aquelas que vão fazer uma cirurgia?

E.P.: Eu indicaria a essas pessoas que se elas não puderem procurar um psicólogo para fazer uma avaliação mesmo sobre aquele momento de vida, para que elas mesmas se autoavaliem de uma forma que elas consigam realmente parar para pensar se aquilo é algo necessário ou não. De onde vem essa influência por esse desejo de fazer essa cirurgia? Isso é real? Eu posso perguntar para as pessoas que estão perto de mim e que eu confio – pai, mãe ou amigos mais próximos: realmente você acha que isso aqui está ruim? Para até eu conseguir ver uma visão das outras pessoas em relação a isso. Não que isso vai determinar o resultado final, mas pode fazer com que ela mude ou reflita sobre a ideia. E que essa pessoa também procure profissionais realmente qualificados. Já que isso vai ser feito, que seja feito, então, da forma menos dolorosa possível para ela posteriormente. Porque se ela busca, na verdade, resolver um problema, ela não quer se complicar com outro problema. Teoricamente, é isso. Ela quer resolver. Não problematizar algo.

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