O contato entre o empresário Joesley Batista, dono da J&F, com o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Social) foi intermediado por uma pessoa com relação direta com político, que facilitou o trâmite de pedidos de dinheiro. Guido Mantega, ex-ministro nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, era o homem representante de partido político e com cargo e aval em instituição pública, a serviço de duas frentes.
O desdobramento dessa relação iniciada no âmbito burocrático tem sido noticiado diariamente e ilustra o que é chamado de “triângulo da fraude”. Milhões em contas de partidos políticos e bilhões nas contas de um grupo de empresas, que em tempo baixo de vinte anos passou de uma modesta rede de açougues para o maior aglomerado multinacional de negócios.
O diretor de relações instituições do Instituto Compliance Brasil, Rafael Gomes, diz que o estudo foi desenvolvido na década de 1950 pelo criminologista e sociólogo norte-americano Donald Cressey. À época ele entrevistou 250 criminosos ligados ao poder público nos Estados Unidos para saber como empresas e Estado criam relações de fraude, que estende a uma rede com vários atores que se perpetua.
“O que ele descobriu foi que a corrupção é realizada a partir de situações que envolvem tanto o benefício do agente público quanto o da empresa, em alguns casos com certa dificuldade de separar qual dos envolvidos deu início às ações de fraudes”.
Os três fatores são problema financeiro não compartilhável, oportunidade de cometer uma violação de confiança e racionalização por parte do infrator. Rafael Gomes explica que a busca de expansão de atividades pelos empresários está associada à necessidade de ter recurso em caixa para executar o projeto, ou quando ocorrem problemas financeiros que precisam ser sanados e falta caixa.
“O poder público pode ser procurado neste caso para empréstimo, ou também assume serviços que estão para além dos recursos financeiros da empresa em um dado momento, então, de novo as instituições públicas podem ser visto como caminho de socorro”.
Esse contato entre empresas e poder público, diz ele, geralmente é realizado por meio de um intermediário, com influência tanto nas instituições públicas como com representantes delas, e o meio privado. A partir desse ponto, pode aparecer a “oportunidade de violação”.
“A corrupção é sempre o abuso do poder para benefício pessoal. Então se estabelece relação de interesses entre o empresário e o representante do poder público com seus interesses, em que nem sempre o beneficiado é ele próprio, mas o grupo político por trás dele”.
A situação também pode ser exemplificada por casos da J&F. Conforme deleção premiada do executivo Ricardo Saud, 1.829 candidatos, de 28 partidos, receberam propina do grupo. Foram eleitos 179 deputados estaduais, 167 deputados federais, 28 senadores e 16 governadores.
Em Mato Grosso, o empresário Wesley Batista afirma em depoimento ao Supremo Tribunal Federal que ex-governador Silval Barbosa (2010-2014, pelo PMDB) teria recebido cerca de R$ 30 milhões para liberar incentivo fiscal diferenciado, entre 2011 e 2013. Repasses seriam para cobrir dívidas de campanhas quantos negócios pessoais de Barbosa.
A racionalização burocrática para fora da ética
O processo de racionalização é fator enfatizado pelo diretor do Instituto Compliance Brasil, Rafael Gomes. Ele afirma que o desdobramento da corrupção é antecedida por falha ética e a racionalização é usada como autojustificativa para encobrir os conflitos morais.
“Imagine que jovem entrou na carreira administrativa com a esperança de fazer carreira e realizar os desejos de qualquer pessoa. Vinte anos depois ele está envolvido com pessoas com quem nunca pensou se envolver e participa de esquemas em que nunca imaginou estar mergulhado”.
A avaliação é baseada no estudo do sociólogo Donald Cressey. O pesquisador explica em seu estudo que o caso do ingressante no mundo dos negócios é semelhante ao do servidor público em início de carreira, que busca fortalecimento no mercado e lida com as brechas para a corrupção. Cressey afirma que nesta situação a tendência é “precarizar” as regras morais.
“Isso pode ser exemplificado pelo caso do Jordan Belfort [executivo e investidor norte-americano]. Em entrevista, ele foi questionado sobre como começou a participar de esquemas de corrupção, e a resposta foi que ele descobriu que pode autojustificar a ação dele pelo ambiente em que estava”, comenta Rafael Gomes.
Ele, no entanto, rejeita a explicação exclusivamente ambiental do problema. Afirma que a relativização moral pode colocar o indivíduo sem apoio para rejeitar os desvios. No caso brasileiro, o poder político seria o fator de pressão.
“É verdade que existe o problema de ética, que não pode fugir às ações do próprio sujeito, e o poder político no país somente complica o problema”.
Criminalista afirma que empresas estão acobertadas por lei
A professora de Direito Penal da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso) Vladia Soares afirma que as “leis extravagantes” deixam escapar punição apropriada a entes privados em crimes de fraude pública. Ela critica os acordos de delação premiada que “beneficiam” empresários.
“O dinheiro negociado nos crimes de fraudes tem que ser devolvido. Qual é punição ao empresário que fecha delação, confessa o que sabe e vai morar na 5ª Avenida, em Nova York, onde os apartamentos custam milhões? Isso desenvolve uma cultura de colaboração, de dedo-duro”, questiona.
A advogada afirma que a desatualização da legislação penal no país cria brechas para espace judicial de empresários por falta de regras para aplicar nos casos. Disse ainda que as leis sobre crime organizado, nas quais inclui a negociação de delação premiada, e a de lavagem de dinheiro, são criações de urgência para lidar com situações específicas.
“Isso prejudica o direito penal brasileiro porque os casos não decididos com base em princípios, são regras para casos particulares. Não temos uma norma que guie o direito. Hoje ocorre acobertamento de empresários envolvidos em fraude”.
Ela classifica as decisões tomadas nesse contexto de “ativismo judicial”, visto que instituições judiciais de maior porte, como Supremo Tribunal Federal, precisa intervir para decidir a questão.
“Não acontece somente em crimes de corrupção. O STF decidiu recentemente sobre abordo, sobre anencefalia, porque não há leis no Brasil que prescrevem como julgar os casos, que entram no ativismo judicial”.
Empresas buscam credibilidade com análise de riscos à corrupção
O impacto social negativo nos negócios gerado pela corrupção tem feito empresas buscarem caminhos para se prevenir contra a infiltração de crimes. O conjunto de esforços para mapear as atividades corporativas recebeu o nome de compliance, um termo em inglês que se refere a ações realizadas em acordo para impedir o indesejado.
Rafael Gomes diz que no Brasil o projeto está em fase germinal e envolve análise de riscos da empresa. “É saber qual a condição da empresa de negociar com o poder público e quais os riscos estão inseridos nessa relação, para então os pontos serem trabalhados com foco”.
Os riscos passam por problemas identificados por Donald Crassey. Na prática, explica Gomes, a participação em concorrências públicas, ligação de executivos com políticos e situação financeira da empresa para realizar serviços são os cardeais que orientam o mapeamento.
“A empresa precisa ser honesta para concorrer em licitações que consiga prestar serviços. Senão, vai vender um serviço que não consegue prestar e pode tentar buscar recursos em instituições públicas”.
Analistas afirmam que uma moeda de troca entre políticos e empresários nos esquemas de fraude é o pagamento de propina por facilidades no mercado, como acesso a financiamentos vultosos e eliminação de concorrência.
Setas tem a meta de executar programa compliance até 2018
O programa também tem sido adotado por instituições públicas para alcançar a idoneidade. Em Mato Grosso, há o Gabinete da Transparência e Combate à Corrupção, trabalho projeto piloto de uma versão do compliance, de orientação a servidores públicos e empresas privadas. As secretarias de Educação (Seduc) e Trabalho e Assistência Social (Setas) aderiram à aplicação.
A coordenadora do Programa de Integridade da Setas, Thalita Alves da Costa, afirmou que a meta é estar com a análise sobre riscos da secretaria concluída até o fim de 2018 e com ações em andamento para corrigir desvios de servidores.
“Estamos analisando os riscos da Setas, mas já há orientação a servidores, que podem mudar suas atitudes no dia a dia. O problema da corrupção acontece tanto em esquemas grandes, com participação de grandes empresas, quanto em coisas pequenas, como usar serviços pequenos e materiais de instituições públicas para fins pessoais”.
Conforme o secretário-adjunto do Gabinete da Transparência, Matheus Lourenço Cunha, o programa de compliance em teste no Executivo passa por cinco etapas, que vão de orientação de servidores públicos à realização de investigação de esquemas de grande porte. Entre esses dois pontos há proposta de orientação a empresas participantes de concorrência pública.
41 empresas são investigadas por corrupção em Mato Grosso
Atualmente, 41 empresas estão impedidas de realizar contrato para serviços a instituições públicas. Os números são da Controladoria Geral do Estado (CGE). Elas estão enquadradas em processo administrativo de responsabilização (PAR), um deles apura o envolvimento de 23 empresas de construção civil em suposto esquema em andamento pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) na Operação Rêmora na Seduc.
Outras cinco empresas, listadas em processo único, são investigadas na Operação Sodoma pela Polícia Civil via Delegacia Fazendária (Defaz) e foram denunciadas pelo Ministério Público do Estado (MPE). A Consignum, empresa de empréstimo com desconto em folha de pagamento para servidores estaduais, é um das investigadas.
Além das empresas investigadas por participação em esquema de fraudes, 145 empresas estão com cadastro bloqueado por descumprimento de termos contratuais. O tempo de impedimento é variado, com a maioria penalizada com três ou cinco anos.