Internacional

As crianças que sofreram ‘lavagem cerebral’ pelo EI e que estão fugindo para a Europa

À medida que as pessoas começam a embarcar, o garoto sírio repassa na mente as frases em espanhol que aprendeu. As autoridades poderão lhe fazer perguntas, e ele está viajando com um passaporte espanhol falso. O documento custou mais de 3 mil euros (mais de R$ 11 mil) e foi comprado de contrabandistas de pessoas que o ajudaram a fugir da Síria para a Turquia e agora para a Europa.

Apenas um mês antes, ele tinha estado em Raqqa, uma cidade controlada pelo grupo autodenominado "Estado Islâmico". O adolescente tinha sido colocado para trabalhar em um hospital local e cuidar de combatentes do EI. Antes disso, integrava uma das unidades de propaganda do grupo.

Mas essa foi uma outra vida, que ele quer esquecer. Os ataques aéreos, os gritos, as pessoas decapitadas… Tudo agora ficou para trás. Toda essa história precisa ser mantida em segredo, já que um novo começo o espera na Alemanha – mas isso só se as autoridades não descobrirem que ele foi treinado para ser um "filhote de leão", como eram chamados os soldados mirins do califado.

O Estado Islâmico está entrando em colapso. Na Síria, no Iraque, na Líbia… Em todos esses lugares, eles estão perdendo território. Suas ambições de um califado mundial não estão se mostrando realizáveis. Mas talvez isso já estivesse previsto. Havia um plano B, uma "política de segurança" pensada para prolongar a sobrevivência do grupo extremista depois da perda de controle sobre Raqqa, Sirte e Mosul.

Primeiro, veio o aliciamento, depois o recrutamento e o treinamento para criar um novo exército de crianças jihadistas, que poderiam virar combatentes adultos. A nova geração de ódio do Estado Islâmico.

Mutassim não tem muito perfil de guerrilheiro. Ele é baixo e nervoso. Eu o conheci no pequeno vilarejo alemão onde está vivendo agora. Estava fumando – um vício que adquiriu depois de deixar a Síria, já que isso é proibido pelo EI. E apesar de ainda não passar do meio-dia, ele me oferece uma lata de cerveja.

Ele diz que parou de rezar e abandonou suas crenças. Antes, ele havia absorvido por completo as lições do EI e seguia seu caminho extremista.

O jovem havia filmado lugares atingidos por ataques aéreos, ajudado feridos no hospital e testemunhado decapitações públicas. Ele também recebeu treinamento militar, o que é pré-requisito do grupo. No caso de Mutassim, durou apenas 15 dias – para outros, pode durar muito mais. O programa é rigoroso, começa às 4h da madrugada com orações. Exercício físico, treinamento para combate e lições sobre a sharia, a lei islâmica.

Como parte do treinamento, adolescentes tinham que saltar por pneus em chamas, rastejar sob arame farpado, enquanto balas disparadas voavam sobre suas cabeças.

Um amigo – um garoto de 13 anos do leste de Ghouta, perto de Damasco – foi atingido na cabeça por uma bala perdida e morreu. Mutassim viveu tudo isso antes de completar 16 anos.

Muitos grupos armados na África, no Oriente Médio e na América do Sul, treinaram crianças para batalhas. Recrutar crianças como soldados é um crime de guerra. Mas poucos refinaram esse treinamento de maneira tão eficiente quanto o EI.

Para se ter uma ideia, as unidades móveis de propaganda que o grupo levou a vários pontos do território mostram punições e combates. Crianças de cinco anos de idade frequentam esses lugares.

Vídeos filmados secretamente em Raqqa e enviados à BBC mostram crianças rodeando, animadas, uma espécie de jaula. Dentro dela, está um morador local, um comerciante local chamado Samir.

Eles encaram o prisioneiro, que está sentado no centro da jaula, com a cabeça entre os joelhos. Uma das crianças esguicha Samir com alguma coisa. De acordo a ficha de acusação, ele havia abusado sexualmente de uma mulher muçulmana. Sua punição era prover entretenimento às crianças – como um animal em um zoológico. Mas crianças como aquelas provavelmente já haviam visto muita coisa pior – como decapitações e execuções.

Os militantes têm sido cuidadosos na hora de recrutar adolescentes para a causa. Eles aliciam as crianças não apenas com promessas de salvação e paraíso, mas também com a realização de desejos mais terrenos.

A vida com o EI é difícil e perigosa, mas tem suas recompensas. Para Mutassim, prometeram uma esposa.

Quando tinha 14 anos e meio, estava muito a fim de se casar. Quando sua família recusou sua vontade, o EI entrou em cena. Eles o permitiram viver com eles, deram ao garoto responsabilidades, o ensinaram a dirigir e se comprometeram a encontrar para ele uma noiva.

"Eles me trataram bem, eu me senti como um rei e eles eram meus servos."

Pelo menos 2 mil crianças já participaram de treinamento do EI p (Foto: Reprodução/BBC)

Mutassim era um recruta voluntário. Ele diz que cerca de 70% dos jovens que se juntaram à organização tinham problemas familiares. "Eles usariam esses problemas contra suas famílias, então, ou elas supriam suas demandas ou eles se juntariam à organização."

Mas conforme o tempo foi passando e a guerra se intensificando, a vida em Raqqa passou a ser mais difícil.

"Quando ocorreu o atentado ao estádio na França (novembro de 2015), ninguém podia dormir em Raqqa", conta. "Os franceses bombardearam a cidade toda. Eu fiquei com raiva porque muitos civis inocentes morreram."

Após outro ataque aéreo, ele ouviu crianças chorando, mulheres gritando por ajuda. "Foi uma cena que não vou esquecer nunca. Parecia um filme de ação."

Aos poucos, Mutassim foi se desiludindo com o EI. Combatentes que antes ele via como corajosos e fortes não eram verdadeiros com suas crenças, segundo ele.

"Decidi sair quando vi um deles batendo em uma mulher. Fiquei furioso. Ele era um estrangeiro e estava batendo em uma mulher síria. Daquele dia em diante, comecei a odiar o Estado Islâmico. Foi preciso quatro meses até que eu conseguisse sair."

Mutassim se reconciliou com sua família, que sempre o aconselhou a sair do país o quanto antes. Eles pagaram contrabandistas para ajudá-lo a escapar.

Raqqa e a área do entorno dela é um campo de batalha, com forças concorrentes em diferentes pontos de controle. Os riscos são altos – como o de ser capturado.

"Se você tentar sair, você será preso – a maioria dos que tentaram foram executados."

Na fronteira sul da Turquia, encontrei Abu Jasen, o contrabandista de pessoas que ajudou a tirar Mutassim da Síria. Ele diz que a rota hoje é mais difícil do que era entre 2014 e 2015. Para alcançar a fronteira, a pessoa tem que passar primeiro pelas Forças Democráticas da Síria – uma aliança de curdos com árabes opositores do EI – que têm listas de nomes de recrutas do grupo extremista e estão à procura deles.

O próximo obstáculo é passar pelo território controlado pelo Exército Livre da Síria, que faz oposição ao presidente Assad e ao EI.

Mutassim descreve parte do desespero que passou durante a missão de fugir do EI. "Eles atiraram sobre nossas cabeças", relata sobre quando cruzou a fronteira com a Turquia. Ainda que guardas sejam pagos para deixar os sírios passar, isso não torna o trajeto menos apavorante.

Depois o desafio foi cruzar a Grécia com um passaporte falso. Hoje, ele mora em um hotel para refugiados na Alemanha – e foi me contando os pesadelos que viveu na Síria e que nunca vai esquecer.

Mutassim era um recruta voluntário. Ele diz que cerca de 70% dos jovens que se juntaram à organização tinham problemas familiares. "Eles usariam esses problemas contra suas famílias, então, ou elas supriam suas demandas ou eles se juntariam à organização."

Mas conforme o tempo foi passando e a guerra se intensificando, a vida em Raqqa passou a ser mais difícil.

"Quando ocorreu o atentado ao estádio na França (novembro de 2015), ninguém podia dormir em Raqqa", conta. "Os franceses bombardearam a cidade toda. Eu fiquei com raiva porque muitos civis inocentes morreram."

Após outro ataque aéreo, ele ouviu crianças chorando, mulheres gritando por ajuda. "Foi uma cena que não vou esquecer nunca. Parecia um filme de ação."

Aos poucos, Mutassim foi se desiludindo com o EI. Combatentes que antes ele via como corajosos e fortes não eram verdadeiros com suas crenças, segundo ele.

"Decidi sair quando vi um deles batendo em uma mulher. Fiquei furioso. Ele era um estrangeiro e estava batendo em uma mulher síria. Daquele dia em diante, comecei a odiar o Estado Islâmico. Foi preciso quatro meses até que eu conseguisse sair."
 

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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