Na tarde da sexta-feira, dia 11 de setembro, me presenteei com o filme-ensaio sobre Ney Matogrosso, Olho Nu, da coleção Canal Brasil. Dirigido por Joel Pizzini, estreou em 2014 durante a 37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, também com brilhantes passagens pelo Festival de Cine em Guadalajara e Doc Lisboa Festival Internacional do Cinema.
Olho Nu apresenta “imagens e sons reunidos pelo artista, em contraponto com sequências atuais. Num espetáculo sobre o percurso musical de Ney, o longa evoca sua história nos palcos e na vida cotidiana.” Recomendo: http://43.mostra.org/br/filme/183-Olhu-Nu
Em Olho Nu, especialmente as cenas da banda Secos & Molhados, formada por João Ricardo, Ney Matogrosso e Gérson Conrad, em apresentação no ginásio Maracanãzinho, Rio de Janeiro, a driblar a ditadura militar. E lá estavam eu e minha irmã Tetê, em 1974, na lotadíssima arquibancada.
Nos tempos de hoje, a “maré não está para peixe”. Aliás, assim continua a maré. Inquietudes preenchem esses dias pandêmicos. Ao término de Olho Nu, ative-me especialmente em uma passagem: quando Ney Matogrosso lembra que alguém sugere a ele que se apresente com a boina de Ernesto Guevara, o Che, num ato de protesto contra os “dias de chumbo”. O cantor confessa que preferiu vestir-se com plumas e paetês, pois sua “arma era a libido”.
Fiquei a pensar, se tivesse oportunidade, o que sugeriria a Ney Matogrosso usar como adorno de cabeça…
Logo me veio a imagem do aro emplumado da menina-moça Nambiquara. Um adorno elaborado por mãos masculinas, envolto na narrativa mítica, vinda de tempos imemoriais. Um presente do tucano, Yalansu, que contribuiu com suas coloridas penas para comemorar a menarca das moças da aldeia Nambiquara, a lembrar o círculo da lua.
Acho que Ney aceitaria orçar-se com o aro emplumado Nambiquara, não unicamente por sua beleza, mas principalmente porque lhe contaria as últimas informações fatídicas pelas quais vêm passando os povos indígenas.
– 812 mortos por Covid-19, 32.315 infectados, em 158 povos indígenas;
– Desmatamento de 382 hectares no interior da Terra Indígena Piripikura, de índios isolados;
– Povo Indígena Guató, da Terra Indígena Baía dos Guató, Mato Grosso, com a demarcação abandonada pelo poder público, enfrenta o fogo que destruiu 83% de seu território;
– Desmate, invasões e garimpos na região da Amazônia, inclusas as Terras Indígenas;
– 38% da população indígena vivem em situação de pobreza;
– A expectativa de vida do indígena está em 62 anos, a mesma de 27 anos atrás.
– O atual presidente da República declara: “Uma parte considerável das pessoas que desmatam e tocam fogo é indígena, caboclo”.
Acredito que estas alegações levariam Ney Matogrosso, de “sangue latino”, de “alma cativa”, a usar o aro emplumado da menina-moça Nambiquara, o adorno da transformação. E, com sua majestosa altivez, lançaria “no espaço um grito, um desabafo” os dizeres do chefe da nação Yanomami, Davi Kopenawa: “toda essa destruição não é nossa marca, é a pegada dos brancos, o rastro de vocês na terra.”