A Lei nº 14.230 de 25 de outubro de 2021, foi publicada no D.O de 26/10/2021, e alterou a antiga Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), entrando em vigor imediatamente, na data de sua publicação.
Houve grande avanço do Direito Administrativo Sancionador quando da edição da nova Lei de Improbidade Administrativa, que dificulta a utilização indiscriminada da referida ação para casos que não sejam extremados, por estabelecer uma filtragem maior sobre os casos em que, agora são necessários a figura do dolo direto e são afastados os pequenos “pecados veniais” consistentes em atos ilegais, que não se subsume mais em ímprobo.
Como o artigo 1º, § 4º, da Lei nº 14.230/2021, manda aplicar ao sistema da improbidade os princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador a grande indagação nesse momento embrionário é saber se ela retroagirá para os casos em curso, propostos sob a égide da Lei n 8.429/92, e saber também se ela terá efeitos para os casos já julgados.
Assim está grafado o § 4º, do artigo 1º, da Lei º 14.230/2021:
“Art. 1º – O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta lei.
(…)
§ 4º – Aplica-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.”
Qual a extensão dessa norma legal?
In casu, o sistema da Improbidade Administrativa adotou expressamente os princípios do Direito Administrativo Sancionador como uma forma de limitar o poder persecutório estatal, conferindo mais garantias aos acusados, pois não há como negar que os enunciados da maioria dos tipos administrativos dos estatutos disciplinares são extremamente abertos, o que exige do seu aplicador (intérprete) especial atenção e cuidado com os aspectos fáticos dos ilícitos administrativos ali elencados, para se evitar que a extensão conceitual de determinadas figuras jurídicas possuam o condão de ampliar os seus contornos, ao ponto de neles interpretarem que cabem condutas que não expressam infrações graves à ordem administrativa e que por isso não devem ser classificados como infração administrativa disciplinar, mas sim meras irregularidades indiferentes ao Direito Sancionador.
Sobre o tema, deixamos registrado anteriormente:[1]
“Ora, o Direito Administrativo Sancionador Contemporâneo exige que haja um ilícito administrativo previsto em lei, com clara e certa descrição da conduta do servidor tida, em tese, como infração disciplinar. É a chamada reserva legal, onde o princípio da legalidade impõe que ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’. (art. 5º, II, da CF).”
Para poder impor sanção, o poder disciplinar necessita, antes de mais nada, definir na lei (e somente nela) o fato infracional, com as minúcias, bem como todas as circunstâncias e a devida classificação do ilícito.
Em sentido igual, segue o disposto no artigo 41 do Código de Processo Penal:
“Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”
É, portanto, insuficiente a clássica definição legal e doutrinária de infração administrativa como uma mera irregularidade praticada no serviço público (art. 143 da Lei nº 8.112/90), definido como descumprimento de um dever ou obrigação funcional pelo destinatário da norma jurídica, cuja sanção passa a ser imposta pela autoridade administrativa competente.
Não se configurará infração administrativa a conduta baseada apenas pelo ajuste semântico gramatical do texto da norma proibitiva ou deontológica. Afigura-se, dessa forma, insuficiente o enquadramento típico meramente formal da conduta, visto que ela deve ser vinculada também aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Essa filtragem constitucional é uma condicionante do tipo administrativo sancionador, que não admite mais o exercício da persecução disciplinar indiscriminada, desatrelada de um justo motivo.
A jurisdição sancionadora deve sempre se pautar pelo garantismo judicial, aplicando às pretensões punitivas o controle de admissibilidade que resguarde de forma eficaz e permanente os direitos subjetivos do agente investigado (imputado), ao invés de apenas viabilizar o exercício da persecução pelo órgão público repressor.
Pela nova sistemática legal, a petição inicial da ação de improbidade administrativa deve observar os seguintes requisitos:
– Individualização da conduta do Réu;
– Conjunto probatório mínimo que demonstre a ocorrência das hipóteses dos arts. 9º a 11 da presente lei;
– Demonstração de autoria, salvo impossibilidade devidamente fundamentada;
– Documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da veracidade dos fatos e do dolo imputado.
Não havendo verossimilhança na petição inicial do Ministério Público, a ação é natimorta.
Pela nova sistemática legal, o exercício de ação não se trata mais de direito potestativo do órgão ministerial acusador, visto que ele terá que demonstrar, em sumaria cógnito, a viabilidade da peça exordial, sob pena de rejeição da mesma.
Em sendo assim, se da narrativa do órgão acusador, na hipótese jurídica da improbidade administrativa, não houver elementos que permitam ao julgador se convencer da ausência das condições de prosseguimento da ação de improbidade – reconhecendo a inexistência de elementos probatórios mínimos que demonstrem a ocorrência das hipóteses dos arts. 9º, 10 e 11, Lei nº 14.230/2021 e de sua autoria (art. 17, § 6º, I), ou a inadequação da mesma ante a ausência de indícios suficientes da veracidade dos fatos e do dolo imputado (art. 17, § 6º, II) – deverá rejeitar o processamento do feito (art. 17, § 6º – B).
O referido dispositivo (art. 17, § 6º – B) é, sem dúvida alguma a manutenção do garantismo inserto na própria Lei de Improbidade, visto que representa um constrangimento para qualquer pessoa ser processada. Uma autoridade pública, quando é processada, tem um desgastemuito maior que qualquer cidadão, porque o “simples” fato de ser processado tem grande repercussão política[2] e familiar na pessoa do imputado.
Efetivamente, as ações de improbidade administrativa, por possuírem o peculiar caráter sancionador estatal, se assemelham às ações penais e exigem, dessa maneira, um terceiro elemento para o preenchimento das condições da ação – e, consequentemente, viabilidade da pretensão do autor: a justa causa, correspondente a um lastro mínimo de provas que atestem a possibilidade da prática da conduta ímproba (materialidade) e indícios de autoria do imputado.
Em sendo assim, necessário se faz identificar, no amplo contexto das pseudos infrações administrativas passíveis de cometimento pelo agente público, aquelas que contenham seguras provas (elementos que compõem a materialidade e a autoria) que apontem, mesmo que de forma indiciária, para a necessidade de mínima relevância para o Direito Administrativo Sancionador.
Esses elementos são tal qual no Direito Penal: a tipicidade (formal), a lesividade, (ou tipicidade material), a antijuricidade e a culpabilidade, que compõem um verdadeiro conceito analítico do tipo administrador sancionador.
A aplicação subsidiária desses princípios do Direito Administrativo Sancionador sempre esteve vigente nas ações de improbidade administrativa, sendo certo que o § 4º do artigo 1º, da Lei nº 14.230/2021, estabelece com veemência, a aplicação ao sistema da presente lei, os princípios constitucionais de tal direito.
O Direito Administrativo Sancionador, no seu caráter instrumental, deve respeitar os fundamentos da República, destacadamente, todos os corolários juridicamente atrelados ao respeito da dignidade da pessoa humana.
Nessas condições, Alejandro Nieto:[3]
“El Derecho Administrativo Sancionador actual – contaminado, sin duda, por las preocupaciones ideológicas constitucionales y por tradición penalista – se autoproclamó de inmediato defensor a ultranza de los derechos y garantías individuales, no descuidados ciertamente en la época anterior pero a los que no había dado la importância que meracían al menos en la materia de orden público.”
Ao aplicar, no sistema da improbidade administrativa os Princípios Constitucionais do Direito Administrativo Sancionador, o legislador destacou especial atenção para: o princípio da legalidade, corporificado na tipicidade (arts. 5º, II e XXXIX, e 37, caput, da CF); os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LIII, LIV e LV, CF); os princípios da segurança jurídica e retroatividade da lei benéfica (art. 5º, caput, XXXIX e XL, CF); o princípio da individualização da sanção (art. 5º, XLVI); e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (arts. 1º e 5º, LIV).
Quanto ao princípio da legalidade, sob o viés da tipicidade, é uma consequência que a acusação seja certa, objetiva, circunstanciada e o fato imputado ao agente público subsumido em um tipo legalmente previsto na Lei de Improbidade.
A acusação genérica, vaga e aberta não possui mais espaço no cenário do Direito Administrativo Sancionador Constitucionalizado.
Ora, o Direito Administrativo Sancionador contemporâneo exige que haja uma imputação de ilícito administrativo previsto na lei, com clara e certa descrição da conduta do agente, tida em tese, como infração disciplinar, como já dito, não admitindo mais que haja acusação gerada pela intelectualidade de seu subscritor desatrelada dos princípios do Direito Administrativo Sancionador Constitucionalizado.
É a chamada reserva legal, onde o princípio da legalidade impõe que “ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa em virtude de lei” (art. 5º, II, CF). Tal princípio visa combater o poder arbitrário do Estado, visto que só por meio das espécies normativas (art. 59, CF) devidamente elaboradas, conforme as regras de processo legislativo constitucional, podem criar obrigações para o agente, pois são expressão da vontade geral.
No caso específico da improbidade administrativa, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça – STJ, no EREsp nº 1.496347/ES, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJ de 28.04.2021, em homenagem ao princípio da legalidade estrita decidiu não competir ao Poder Judiciário impor a sanção de cassação de aposentadoria, no âmbito da persecução cível, em face da não contemplação de tal sanção no artigo 12 da Lei nº 8.429/92, que apenas previa a perda da função pública.
Em igual sentido, segue o presente aresto:[4]
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. SANÇÃO DE PERDA DA FUNÇÃO PÚBLICA. EXTENSÃO. CARGO OU FUNÇÃO OCUPADO NO MOMENTO DO TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISÃO CONDENATÓRIA. PRECEDENTES.
(…)
2. A Primeira Seção do STJ no EREsp 1.496.347/ES, Rel. Min. Herman Benjamin, Rel. p/ Acórdão Min. Benedito Gonçalves, Primeira Seção, julgado em 24/2/2021, DJe 28/4/2021, também decidiu não competir ao Poder Judiciário impor a sanção de cassação de aposentadoria, no âmbito da persecução cível por meio de processo judicial no qual se apura a prática de ato ímprobo, em virtude do princípio da legalidade estrita em matéria de direito sancionador. Na oportunidade, consignou-se que ‘a cassação de aposentadoria do servidor deve ser buscada na sede própria, qual seja, o processo administrativo disciplinar, única sede na qual o legislador federal, de forma categórica e taxativa, prescreveu sua aplicação, inclusive sob o aspecto procedimental, […], reservando-se à ação civil pública por ato de improbidade administrativa, a aplicação das penalidades estampadas no art. 12 da Lei n. 8.429/1992’.". (g.n.)
Pelo princípio da reserva legal, não há crime sem lei que o defina; não há pena sem cominação legal (art. 5º, XXXIX, CF).
Dessa forma, a conduta funcional tida como irregular deve se revestir de tipicidade e antijuridicidade, bem como haver indícios de autoria devidamente demonstrados e elementos suficientes que comprovem a materialidade, para que a ação de improbidade administrativa possa ser admitida.
Por sua vez, para se instituir os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa na esfera do Direito Administrativo Sancionador, em primeiro lugar, faz necessária a existência de um processo justo, onde o acusado tenha a devida ciência da descrição/narração circunstanciada do fato tido como infração disciplinar, devidamente tipificado em um dispositivo legal, cuja prática lhe foi imputada.
Ou seja, como averbava Heleno Cláudio Fragoso,[5] “o elemento essencial de garantia para o acusado, a narração minuciosa do fato, fundamenta o pedido, demonstra a convicção da acusação pública, sendo justificado tanto na ação penal, como no procedimento administrativo disciplinar, porquanto é afastado o arbítrio e o abuso de poder.”
Esse direito fundamental do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório são cruciais para a busca da verdade real, além de prestigiar o princípio da transparência.
Tem-se que o devido processo legal configura a proteção do indivíduo, que possui a garantia de estabelecer uma paridade total de condições com o Estado persecutor, bem como a plenitude de sua defesa, utilizando-se da produção de todos os meios lícios de provas admitidas em direito.[6]
Essa cláusula do due process of law proíbe a discriminação e a diferenciação do agente acusado em ações de improbidade administrativa ou em processo administrativo disciplinar.
Sobre o princípio da igualdade, Diogo Freitas do Amaral[7] aduz:
“A igualdade opõe que se trate de modo igual o que é juridicamente igual de modo diferente, na medida da diferença. Ou seja, como vem sendo reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, que o princípio da igualdade se projeta fundamentalmente em duas direções: – proibição de discriminação; – obrigação de diferenciação.”
O princípio do contraditório juntamente com o princípio do devido processo legal e da ampla defesa são garantias constitucionais estabelecidas no art. 5º, LV, da CF, destinado a todos os litigantes, inclusive no processo administrativo disciplinar. Objetiva esse princípio estabilizar a produção da defesa do agente acusado porquanto se constitui na própria exteriorização da prerrogativa de manifestações livres e independentes.
O direito de defesa liga-se ao sistema probatório, compreendendo o direito das partes a livre produção de provas cabíveis no processo.
Sem a produção livre da prova, não há como formar a convicção do órgão jurisdicional acerca da tese de defesa nas ações de improbidade administrativa.
A produção da prova pressupõe o direito à admissão de toda a prova que, proposta por uma das partes, respeite os limites inerentes à atividade probatória, que o meio probatório admitido seja praticado, pois do contrário, não há como se negar determinada imputação feita pelo Estado persecutor.
Em sendo a prova o meio de influir na formação do convencimento do julgador e, se este não a valora ou toma em consideração os resultados probatórios, será frustrado o direito à prova, convertendo-se, assim, numa garantia ilusória.
Remete-se, o direito à defesa, em matéria probatória, aos limites da lei em matéria de presunções e ônus da prova. Não pode ser justo o processo quando a presunção retira da parte a chance de sustentar todos os fatos relevantes que devem anteceder à decisão do Magistrado, sob pena de ser uma garantia ilusória o princípio da ampla defesa.
O direito à prova deve ser considerado como um direito fundamental, principalmente em virtude de derivar-se dos direitos fundamentais do contraditório/ampla defesa e do acesso à justiça.
Além do mais a prova não se destina exclusivamente ao primeiro grau de jurisdição, sendo útil também ao segundo grau de jurisdição.
A respeito:[8]
“(…) – Cerceamento de Defesa – O caso versa sobre ação de improbidade administrativa, o que envolve matéria de direito e de fato. A complexidade do tema e as sanções a que estão sujeitos os implicados já são razões suficientes para que se adote a mais ampla produção probatória, em homenagem às garantias da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, inc. LV, da CF), atentando-se, evidentemente, à efetividade e a resposta jurisdicional em tempo razoável. O direito à prova deve ser considerado como um direito fundamental, principalmente em virtude de derivar-se dos direitos fundamentais ao contraditório/ampla defesa e do acesso à justiça. A prova não se destina exclusivamente ao primeiro grau de jurisdição, sendo útil também ao segundo grau de jurisdição. Na situação, os fatos provados por documentos e objeto de confissão pela ré Francisca referem-se ao recebimento de benefícios com base na lei de auxílios. A prova documental, portanto, não esgota todas as nuances dos fatos, em especial no que toca ao horário de trabalho da ré, situação que busca esclarecer com a prova testemunhal postulada. A própria sentença, quando da análise da acumulação indevida de cargos, ao mencionar que "os controles de frequência apresentados pela ré FRANSCISCA não são idôneos", deixa evidente a necessidade da realização da prova oral. Deferida a prova oral e sendo necessária a sua produção, é precipitado o julgamento antecipado da lide, sendo evidente que a não realização caracterizou o alegado cerceamento de defesa. A nulidade processual, destarte, está devidamente demonstrada nos autos, caso em que é impositiva a desconstituição da sentença, com o retorno dos autos à origem para a reabertura da instrução (…)”.
Por sua vez, a matriz constitucional do direito sancionador do Estado busca a verdade de um determinado fato, tido em tese como ilícito, para após o exaurimento do devido processo legal, com a ampla chance de defesa do acusado posicionar-se com segurança jurídica para toda a sociedade.
Essa segurança jurídica é resultado do conjunto probatório, fundamentada em provas lícitas colhidas no decorrer da instrução, sob o crivo do contraditório, sem qualquer contaminação, onde de acordo com a materialidade do fato e dos indícios da autoria, se forma determinado juízo de valores sobre o fato concreto.
Não se deve punir o inocente, pois só a certeza, construída por fatos e provas diretas é capaz de afastar a presunção de inocência do agente público acusado.
Não foi em vão que Giorgio Del Vecchio[9] ensinava:
“Para conhecer uma ação humana, é preciso considerar-lhe não só no aspecto externo e o efeito físico, mas também o elemento psíquico ou interno: a vontade e a intenção.”
Esse aspecto externo do ato humano, conjugado como psíquico (vontade e intenção) que Del Vecchio afirma, somente será aferível em um sistema de produção contundente de provas, verificadas no Sistema Judiciário, onde o processo se desenvolve com rigorismo, técnicas e formalidades estabelecidas, em nome da segurança jurídica, para apurar a verdade dos fatos, absolvendo o inocente e punindo os verdadeiros culpados.
Aí reside a essência do princípio da segurança jurídica, qual seja, garantir a estabilidade da relação jurídica do investigado/acusado e o Poder Público.
Da mesma forma, a Lei nº 9.784/99 instituiu o referido princípio da segurança jurídica, inspirada pela CF, não só no caput do art. 2º, como também nos incisos IX e XIII, do seu parágrafo único, bem como nos artigos 54 e 55, do mesmo texto legal.
A Constituição Federal ao proclamar a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito, inseriu implicitamente a segurança jurídica como direito fundamental de todos os cidadãos, inclusive os estrangeiros residentes no país, constituindo uma de suas premissas a aplicação do devido processo legal substantivo.
A irretroatividade da lei penal em direito sancionador é uma regra básica, salvo para beneficiar o Réu (art. 5º, XL, CF).
Ou seja, a irretroatividade da lei mais severa (lex gravior) e retroatividade da lei mais benigna (lex militior).
Mesmo sendo focado para o Direito Penal, por se tratar de Direito Sancionador, na hipótese da improbidade Administrativa, o princípio constitucional da retroatividade da lei mais benéfica, caso da Lei nº 14.230/2021, deve ser aplicado ao campo administrativo e judicial sancionador, cenário no qual se inserem atos ímprobos, justamente por que, assim como a lei penal, a Lei de Improbidade também prevê em seu corpo estrutural um coletivo de sanções e penalidades.
Dessa forma, a retroatividade da lei mais benigna se insere em princípio constitucional com aplicabilidade para todo o exercício do jus puniendi estatal neste se inserindo a Lei de Improbidade Administrativa.
Como subspécie do direito punitivo – o Direito Administrativo Sancionador é destinatário da retroatividade mais benéfica, razão pela qual novas leis que limitam a atividade repressora do Estado, devem ter aplicação imediata, como retroagir aos casos em andamento.
No caso da lei mais gravosa, situação jurídica da Lei nº 8.429/92, quando revogou a Lei nº 4.717/65, como por exemplo, por se tratar dos fatos anteriores à nova lei, o Superior Tribunal de Justiça – STJ negou a retroatividade da mesma, apesar dos fatos terem sido praticados após a promulgação da Constituição Federal, para não privilegiar a lex gravior.
Assim ficou resumido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça – STJ:[10]
“ADMINISTRATIVO. LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. APLICAÇÃO RETROATIVA A FATOS POSTERIORES À EDIÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. IMPOSSIBILIDADE.
- A Lei de Improbidade Administrativa não pode ser aplicada retroativamente para alcançar fatos anteriores a sua vigência, ainda que ocorridos após a edição da Constituição Federal de 1988.
- A observância da garantia constitucional da irretroatividade da lei mais gravosa, esteio da segurança jurídica e das garantias do cidadão, não impede a reparação do dano ao erário, tendo em vista que, de há muito, o princípio da responsabilidade subjetiva se acha incrustado em nosso sistema jurídico (…)” (g.n)
A aplicação da retroatividade da norma mais benigna na esfera do Direito Administrativo Sancionador é uma consequência lógica do artigo 5º, XL, da Constituição Federal, que apesar de inicialmente ser endereçada para o Direito Penal, faz parte do arcabouço dos princípios constitucionais do Direito Sancionador latu sensu.
Os bens jurídicos tutelados pelo Direito Constitucional Sancionador são aplicados para todo o ordenamento jurídico, inclusive no âmbito do processo administrativo sancionador, por extensão lógica.
Em sintonia com esse entendimento, o Supremo Tribunal Federal, no MS 23.262/DF[11], reconheceu que o princípio da presunção de inocência (LVII, do art. 5º, CF) se aplica aos processos administrativos sancionadores, não se limitando só a esfera penal, como se verifica:
“Constitucional e Administrativo. Poder disciplinar. Prescrição. Anotação de fatos desabonadores nos assentamentos funcionais. Declaração incidental de inconstitucionalidade do art. 170 da Lei nº 8.112/90. Violação do princípio da presunção de inocência. Segurança concedida.
- A instauração do processo disciplinar interrompe o curso do prazo prescricional da infração, que volta a correr depois de ultrapassados 140 (cento e quarenta) dias sem que haja decisão definitiva.
- O princípio da presunção de inocência consiste em pressuposto negativo, o qual refuta a incidência dos efeitos próprios ato sancionador, administrativo ou judicial, antes do perfazimento ou da conclusão do processo respectivo, com vistas à apuração profunda dos fatos levantados e à realização de juízo certo sobre a ocorrência e a autoria do ilícito imputado ao acusado.
- É inconstitucional, por afronta ao art. 5º, LVII, da CF/88, o art. 170 da Lei nº 8.112/90, o qual é compreendido como projeção da prática administrativa fundada, em especial, na Formulação nº 36 do antigo DASP, que tinha como finalidade legitimar a utilização dos apontamentos para desabonar a conduta do servidor, a título de maus antecedentes, sem a formação definitiva da culpa.
- Reconhecida a prescrição da pretensão punitiva, há impedimento absoluto de ato decisório condenatório ou de formação de culpa definitiva por atos imputados ao investigado no período abrangido pelo PAD.
- O status de inocência deixa de ser presumido somente após decisão definitiva na seara administrativa, ou seja, não é possível que qualquer consequência desabonadora da conduta do servidor decorra tão só da instauração de procedimento apuratório ou de decisão que reconheça a incidência da prescrição antes de deliberação definitiva de culpabilidade.
- Segurança concedida, com a declaração de inconstitucionalidade incidental do art. 170 da Lei nº 8.112/1990.”
Apesar do art. 5º, LVII, da Constituição Federal consagrar o princípio da presunção de inocência (também conhecida por princípio da não culpabilidade) até o trânsito em julgado de sentença penal, por pertencer ao escopo do Direito Sancionador, foi estendida a sua interpretação para os processos administrativos sancionadores.
Tal posicionamento já havia sido advertido pelo Ministro Celso de Mello quando do julgamento ADPF nº 144, onde a Suprema Corte já havia se posicionado que o estado de inocência não se resume ao tempo estritamente penal. Ao contrário, a referida cláusula se impõe ante a intervenção estatal, por ser direcionada à privação de bens ou direitos ou à aplicação de regras de caráter sancionador.
Nesse sentido, segue a passagem do voto condutor do Min. Celso de Mello na ADPF nº 144[12]:
"Nem se diga que a garantia fundamental de presunção da inocência teria pertinência e aplicabilidade unicamente restritas ao campo do direito penal e processual penal.
Torna-se importante assinalar, neste ponto, Senhor Presidente, que a presunção de inocência, embora historicamente vinculada ao processo penal, também irradia os seus efeitos, sempre em favor das pessoas, contra o abuso de poder e a prepotência do Estado, projetando-os para esferas processuais não-criminais, em ordem a impedir, dentre outras graves consequências no plano jurídico- ressalvada a excepcionalidade de hipóteses previstas na própria Constituição, que se formulem, precipitadamente, contra qualquer cidadão, juízos morais fundada em situações juridicamente ainda não definidas (e, por isso mesmo, essencialmente instáveis) ou, então, que se imponham, ao réu, restrições a seus direitos, não obstante inexistente condenação judicial transitada em julgado.
O que se mostra relevante, a propósito do efeito irradiante da presunção de inocência, que a torna aplicável a processos de natureza não-criminal, como resulta dos julgamentos ora mencionados, é a preocupação, externada por órgãos investidos de jurisdição constitucional, com a preservação da integridade de um princípio que não pode ser transgredido por atos estatais que veiculem, prematuramente, medidas gravosas à esfera jurídica das pessoas, que são, desde logo, indevidamente tratadas, pelo Poder Público, como se culpadas fossem, porque presumida, por arbitrária antecipação fundada em juízo de mera suspeita, a culpabilidade de quem figura, em processo penal ou civil, como simples réu!”
A doutrina[13] não discrepa o que foi consagrado no julgamento acima citado quanto a aplicação da norma processual com efeito imediato.
“As leis que se aplicam a fatos em curso, regulando-lhes as consequências a partir de sua vigência, têm efeito imediato. Já se decidiu, por exemplo, que a decretação da indisponibilidade de bens adquiridos anteriormente à vigência da Lei 8.429/92 ‘não pode ser tachado de retroativa, uma vez que o art. 37 § 4º, da Constituição estabelece que os atos de indisponibilidade importarão a indisponibilidade dos bens’. Norma processual com efeito imediato.”
No que tange à hipótese da retroatividade da lei mais benigna na esfera do direito sancionador, Alexandre de Moraes averba:[14]
“Admite-se, porém constitucionalmente, sempre a favor do agente da prática do fato delituoso, a retroatividade da lei penal mais benigna.”
Essa aplicabilidade ampla da Lei nº 14.230/2021, deve ser reconhecida em relação à retroatividade da norma mais benéfica, dada a relevância social e jurídica de tal princípio geral de Direito Sancionador.
Essa é uma das principais dúvidas para quem já está sofrendo processo por improbidade administrativa, consiste em saber sobre a aplicabilidade das normas de natureza material,especialmente no tocante ao caráter retroativo daqueles considerados mais benéficos em relação à disciplina atual da matéria.
A Lei de Improbidade Administrativa, enquanto produto do ius puniendi estatal, integra o Direito Administrativo Sancionador, como integrante ativo do Direito punitivo, submetendo-se ao núcleo básico de direitos individuais consagrados na Constituição, que são utilizados para frear o exercício ilegal do poder punitivo do Estado.
Não havendo maiores diferenças entre normas penais e normas administrativas sancionadoras, que fazem parte do poder punitivo estatal, o § 4º do art. 1º, da Lei 14.230/2021, expressamente ressaltou a aplicação imediata dos princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador.
Assim, as mudanças mais benéficas da nova lei poderão afetar a demanda judicial em andamento regida pela Lei nº 8.429/92?
A resposta é que a Lei atual poderá, sim, retroagir em benefício de agentes públicos ou de terceiros que ainda estão em investigação (mesmo que os fatos tenham sido praticados sob a égide da Lei nº 8.429/92) ou cuja as demandas tenham sido distribuídas com base na da Lei nº 8.429/92.
Afinal, o texto legal atual não vedou a retroatividade que anule essa possibilidade para os processos ou investigações anteriores à sua promulgação.
Dessa forma, comprovada a ausência de dolo no ato investigado, configurar-se-á a inexistência do ato de improbidade, podendo ser arguido em qualquer fase do processo, consoante lição do art. 17, § 11 da Lei nº 14.230/2021:
“§11 – Em qualquer momento do processo, verificada a inexistência do ato de improbidade, o juiz julgará a demanda improcedente.”
Possuindo a nova Lei de Improbidade uma série de normas de natureza material caracterizadas como mais benéficas aos réus, os seus comandos legais devem afetar diretamente as ações em curso, radiando os seus efeitos de forma imediata.
Exemplo do que fora afirmado é o caso de uma demanda que tenha como causa de pedir a conduta culposa prevista no artigo 10 da Lei nº 8.429/92, com a extinção da culpa no novo cenário legal normativo, que somente permite a punição quando houver o dolo na conduta do réu, será verificada a perda superveniente do interesse de agir do poder estatal, pelo fato da lei atual ter deixado de considerar ilícita a conduta com base na legislação revogada, atraindo, por analogia, a causa de extinção da punibilidade capitulada no artigo 107, inc. III, do CP.
Outra situação que merece destaque é a absolvição penal que discute os mesmos fatos da ação de improbidade transitada em julgado, impede o trâmite da ação da qual trata o ato ímprobo (art. 21, § 4º, da Lei nº 14.230/2021).
Da mesma forma, os sócios, cotistas, diretores e colaboradores de pessoa jurídica de direito privado que foram colocados na ação por ostentarem tal posição, agora, pela nova orientação legal, somente responderão pelo ato de improbidade imputado à pessoa jurídica, salvo se, comprovadamente, houver participação e benefícios diretos, hipótese em que responderão nos limites de sua participação (art. 3º, § 1º, da Lei nº 14.230/2021).
Muitas situações jurídicas advirão do novo texto legal, que ensejará também a discussão se ele poderá alcançar os casos já julgados em definitivo, inclusive com a possibilidade de reversão das sanções aplicadas, tal como a perda de cargos públicos, suspensão dos direitos políticos, proibição de contratar com o Poder Público, dentre outros.
Os defensores da retroatividade para alcançar as situações já transitadas em julgado deverão mitigar essa discussão para os casos em que ainda possam ser discutidas por meio de embargos à execução ou de impugnação ao cumprimento de sentença, a depender da fase que a demanda se encontra, por inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação (arts. 525, § 1º, III; 535, III; e 917, I, todos do CPC), ou mediante ajuizamento de ação rescisória, dentro do prazo decadencial de dois anos após o trânsito em julgado da decisão de mérito, em uma interpretação processual.
Já transitada em julgado a ação, após o decurso do prazo decadencial de dois anos, não há como se alterar os efeitos do que fora decidido, em homenagem ao princípio da imutabilidade da coisa julgada, que faz parte da necessária segurança jurídica dos títulos judiciais.
Sobre a aplicação do princípio da retroatividade da lei mais benéfica ao acusado no Direito Administrativo Sancionador, o Superior Tribunal de Justiça – STJ[15] deu importante contribuição nesse sentido:
“DIREITO ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA AO ACUSADO. APLICABILIDADE. EFEITOS PATRIMONIAIS. PERÍODO ANTERIOR À IMPETRAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULAS 269 E 271 DO STF. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973. APLICABILIDADE.
I – Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte na sessão realizada em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do provimento jurisdicional impugnado. In casu, aplica-se o Código de Processo Civil de 1973.
II – As condutas atribuídas ao Recorrente, apuradas no PAD que culminou na imposição da pena de demissão, ocorreram entre 03.11.2000 e 29.04.2003, ainda sob a vigência da Lei Municipal n.
8.979/79. Por outro lado, a sanção foi aplicada em 04.03.2008 (fls. 40/41e), quando já vigente a Lei Municipal n. 13.530/03, a qual prevê causas atenuantes de pena, não observadas na punição.
III – Tratando-se de diploma legal mais favorável ao acusado, de rigor a aplicação da Lei Municipal n. 13.530/03, porquanto o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador. Precedente. (…)”
Ainda nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, possui como precedentes os seguintes julgados que autorizam a retroatividade da Lei mais benéfica aplicada no Direito Administrativo sancionador: RMS 12.539/TO, Rel. Min. Paulo Medina, 6ª T., DJ de 1.07.2004, p. 278 e MS nº 11.662/DF, Rel. Min. Nefi Cordeiro, 3ª S., DJ de 1.10.2015.
Na mesma linha, segue a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:[16]
“Reconhece-se a natureza administrativa de uma infração pela natureza da sanção que lhe corresponde, se reconhece a natureza da sanção pela autoridade competente para impô-la. Não há, pois, cogitar de qualquer distinção substancial entre infrações e sanções administrativas e infrações penais. O que as aparta é única e exclusivamente a autoridade competente para impor a sanção, conforme correto e claríssimo ensinamento, que boamente sufragamos de Heraldo Garcia Vitta.”
Por sua vez, quanto às normas de natureza processual, não remanesce maiores dúvidas quanto à utilização imediata da atual Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso, que deverão se adaptar às inovações normativas na forma do art. 14 do CPC, e, por analogia do art. 2º do CPP, que preveem a aplicação imediata de norma processual aos processos em curso.
Por outro lado, pelo princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI, CF) se exige estreita correspondência entre a responsabilização da conduta do agente e a sanção a ser aplicada de maneira que a pena atinge suas finalidades de prevenção e de repressão.
Dessa forma, a imposição da pena depende do juízo individualizado da culpabilidade do agente.
A nova lei atenta a necessidade de individualização da conduta do imputado, já que a prática do ato de improbidade administrativa pressupõe conduta, passou a exigir tal pressuposto logo na petição inicial (art. 17, § 6º, I, Lei nº 14.230/2021)[17], sob pena de rejeição da ação (art. 17, § 6-B, Lei nº 14.230/2021).[18]
Na sentença a ser proferida na ação de improbidade administrativa, o juiz deverá indicar de modo preciso os fundamentos que demonstram os elementos a que se referem os arts. 9º, 10 e 11 desta lei, que não podem se presumidos (art. 17-C, I, da Lei nº 14.230/2021).
O que significa dizer que o magistrado terá que julgar de forma individualizada, vinculando a conduta omissiva ou comissiva do agente público e do terceiro, para fins de formação de juízo de valor, não sendo admitido elementos de presunção.
A necessidade de verificação da conduta subjetiva do imputado (individualização) é tão contundente no cenário da improbidade administrativa, que não se aplica, na referida ação, a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor em caso de revelia (art. 17, § 19, I, da Lei nº 14.230/2021).
Por fim, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito sancionador são de importância ímpar, visto que na aplicação das penalidades deverão ser consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, bem como os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente público.
Sobre o tema, deixamos averbado:[19]
“Como o princípio da proporcionalidade objetiva adequa os meios aos fins entre as medidas utilizadas e as necessidades que devem ser atingidas pelo direito público, está presente também princípio como elo de validade dos atos praticados por toda atividade do Estado. Em decorrência de que a lei, como expressão da vontade geral da nação, nasce da manifestação dos agentes delegados da sociedade pelo da sociedade pelo mandato eletivo, mediante o qual se estrutura o Poder Legislativo, radiando os efeitos da lex para a Administração Pública, que aplicará a norma visando atingir o fim elencado pela mesma.”
A Lei nº 8.112/90 que disciplina o Estatuto do Servidor Público Federal, já determina a verificação do princípio da proporcionalidade na aplicação das penalidades, segundo a dicção do art. 128, verbis:
“Art. 128. Na aplicação das penalidades serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais.”
Nesse sentido, com a garantia da razoabilidade o “devido processo substantivo” exige como qualidade de obrigação positiva e vigente perante o órgão legislativo, a de legislador com razoabilidade, ou, em outras palavras, de editar leis razoáveis e justas, que tenham como meta o fim público explícito, sem ocultações ou dissimulações que quase sempre desaguam no excéss de pouvoir.
Os referidos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade mantém os mesmos contornos de importância constitucional quando transpostos para o direito sancionador, em decorrência de que democratizam não só a apuração como o seu julgamento, através de um rigoroso controle entre os meios e os fins utilizados no aludido processo.
Isso porque a apuração da prática de uma infração disciplinar, ocorrida no exercício do munus publico do agente público acusado, terá que ser dosado pelos princípios e pelas normas informadoras do respectivo processo, que são estabelecidos para possibilitar uma justa e segura investigação, sem que haja violação dos direitos e das garantias da defesa.
Na hipótese da improbidade administrativa, o artigo 17, “c”, IV, da Lei nº 14.230/2021, obriga que a sentença a ser proferida, considere de forma isolada ou cumulativa, as seguintes situações legais:
“Art. 17 C – A sentença proferida nos processos a que se refere esta Lei deverá, além de observar o disposto no art. 489 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil):
(…)
IV – Considerar, para a aplicação das sanções, de forma isolada ou cumulativa;
a) os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade;
b) a natureza, a gravidade e o impacto da infração cometida;
c) a extensão do dano causado;
d) o proveito patrimonial obtido pelo agente;
e) as circunstâncias agravantes ou atenuantes;
f) a atuação do agente em minorar os prejuízos e as consequências advindas de sua conduta omissiva ou comissiva;
g) os antecedentes do agente;
V – Considerar na aplicação das sanções a dosimetria das sanções relativas ao mesmo fato já aplicadas ao agente.”
A aplicação da sanção segue critérios objetivos[20] não admitindo mais uma discricionariedade ampla do julgador, visto que ele se vincula as provas produzidas e a individualização da conduta do imputado, porquanto o ato ímprobo está ligado à responsabilidade subjetiva do agente.
Portanto, a conceituação da improbidade administrativa passa pela filtragem dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador, de modo que a imputação de conduta ímproba não pode ser mais definida ao “bel prazer” do órgão acusador, ela deve ser antecedida de um exame de: (a) legalidade formal ou tipicidade; (b) legalidade material ou lesividade; (c) individualização da conduta; (d) antijuricidade; (e)culpabilidade; (f)retroatividade da lei mais benigna; (g) ampla defesa e contraditório, (h) no bis in idem, dentre outros.
O conceito de improbidade administrativa no regime de princípios e regras da Constituição Federal, agora passa por rigoroso exame de princípios constitucionais de direito sancionador, qualificando a investigação do Ministério Público.
Foi a fórmula utilizada pelo legislador para tornar mais sério o ajuizamento da ação de improbidade administrativa, onde o julgador deverá se concentrar em analisar a lesividade ou tipicidade material da conduta, de modo a primar pela aplicação do Direito.
Por essas razões, a nova Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 14.230/2021), em virtude de sua natureza jurídica de cunho sancionatório (tantas as normas de natureza material e processual) se aplica retroativamente aos casos em cursos, por ser mais benéfica do que a Lei nº 8.429/92, na forma do artigo 5º, XL da Constituição Federal.
Mauro Roberto Gomes de Mattos é advogado no Rio de Janeiro. Vice-Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP, Membro da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social, Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social.
[1] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Tratado de Direito Administrativo Disciplinar. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 1220.
[2] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O Limite da Improbidade Administrativa. Comentários à Lei nº 8.429/92. 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 553.
[3] NIETO, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. 5. ed., Madrid: Tecnos, 2012, p. 152.
[4] STJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, AgInt nos EDCl no REsp nº 1910104/DF, 1ª T., DJ de 10.09.21.
[5] FRAGOSO, Heleno Cláudio. “Ilegalidade e Abuso de Poder na Denúncia e na Prisão Preventiva”. In Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal nº 13-63, São Paulo, p. 15.
[6] APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PROVA EMPRESTADA. JULGAMENTO ANTECIPADO DO FEITO. CERCEAMENTO DE DEFESA. OCORRÊNCIA. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. In casu, em que pese a decisora de origem tenha autorizado a juntada de prova emprestada, qual seja, prova testemunhal produzida em ação criminal, acabou por cercear o direito de defesa da parte autora ao julgar o processo de forma antecipada, deixando de oportunizar a manifestação da parte quanto à prova trazida ao feito. Caso concreto que envolve matéria de direito e de fato, devendo ser permitida a mais ampla produção probatória, em homenagem às garantias da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, inc. LV, da CF), atentando-se à efetividade e à resposta jurisdicional em tempo razoável. Sentença desconstituída. Apelo Provido. Apelo Provido. (TJ/RS, Rel. Des. Lúcia de Fátima Cerveira, Apel. Cível, nº 70085171080, 2ª C.C. Julgado em 10.08.2021)
[7] AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administratico. V. II. Coimbra: Almedina, 2006, p. 125.
[8] TJ/RS, Rel. Des. Leonel Pires Ohlweiler, 3ª CC, Ap. Cível nº 70060623368, julgado em 16.02.2017.
[9] DEL VECCHIO, Giorgio. Direito, Estado e Filosofia. Lisboa: Libreria Editora Politécnica Ltda., 1952, p. 289.
[10] STJ, Rel. p/ acórdão Min. Castro Meira, REsp nº 121/GO, 2ª T., DJ de 15.03.2013
[11] STF, Rel. Min. Dias Toffoli, MS 23.263/DF, Pleno, julgado em 23/4/2014.
[12] STF, Rel. Min. Celso de Mello, ADPF 144, Pleno. DJ 26/02/2010.
[13] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo sancionador, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 131.
[14] MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 6. Ed., Atlas, 2006, p. 318.
[15] STJ, Rel. Min. Helena Costa, RMS nº 37031/SP, 1ª T., DJ de 20.02.2018.
[16] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32. ed., São Paulo: Malheiros, 2015, p. 871;
[17] “Art. 17 (…) – § 6º A petição inicial observará o seguinte: I – deverá individualizar a conduta do réu e apontar os elementos probatórios mínimos que demonstrem a ocorrência das hipóteses dos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei e de sua autoria, salvo impossibilidade devidamente fundamentada;”
[18] “Art. 17 (…) – § 6º-B A petição inicial será rejeitada nos casos do art. 330 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), bem como quando não preenchidos os requisitos a que se referem os incisos I e II do § 6º deste artigo, ou ainda quando manifestamente inexistente o ato de improbidade imputado.
[19] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Lei nº 8.112/90 Interpretada e Comentada, Regime Jurídico Único do Servidor Público Federal, 5. Ed., Niterói-RJ: Impetus, 2010, p. 793.
[20] Art. 17C, VII: “indicar, na apuração da ofensa a princípios, critérios objetivos que justifiquem a imposição da sanção.”