No início de 2017, a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou um relatório (Global Hepatitis Report, 2017) sobre a situação das hepatites virais no mundo e o impacto delas na saúde da humanidade. O documento da OMS apresenta dados preocupantes, onde salta aos olhos o número anual de mortes por hepatites. Atualmente as mortes por hepatites estão suplantando progressivamente as taxas de mortalidade ocasionadas por outras graves doenças infecciosas, como a tuberculose, a malária e a Aids. Esse aumento se deve principalmente pelas terríveis complicações ocasionadas pela forma crônica das hepatites, causadas pelos vírus da hepatite B (VHB) e da hepatite C (VHC).
Embora ainda um importante problema de saúde pública, a situação da hepatite B vem melhorando no país, com a vacinação de crianças, no âmbito do SUS, desde 1998. Hoje o Brasil é auto-suficiente: produz e até exporta vacinas contra o VHB. Essa vacinação foi ampliada recentemente e pessoas de todas as faixas etárias têm direito a receber a vacina nos postos de saúde. No entanto, ainda não foi desenvolvida vacina contra o VHC. E não há perspectiva de que isso será possível a curto ou médio prazo.
Calcula-se que existam entre 700 mil a 1,4 milhão de pessoas infectadas pelo VHC no Brasil. Curiosamente, hoje em dia é raro alguém adquirir infecção pelo VHC. O exame minucioso dos doadores de sangue e órgãos, a implantação de técnicas mais eficazes de esterilização de instrumental cirúrgico e odontológico, e o uso disseminado de seringas e agulhas descartáveis, em substituição às antigas seringas de vidro, fizeram com que o risco de ser infectado pelo VHC caísse muito no nosso meio.
Como então o número de casos detectados de hepatite C estão aumentando? É que muita gente se contaminou nos anos 70 e 80 do século passado, quando o VHC ainda não era conhecido e não havia testes que o detectassem. Para piorar, essa infecção normalmente não dá sintomas. Por isso a hepatite C é também conhecida como a “epidemia silenciosa”.
Mas afinal, o que a hepatite C provoca? O VHC se aloja principalmente nas células do fígado, provocando inflamação persistente nesse órgão. Essa situação dura décadas. E, frequentemente, os sintomas só aparecem quando o acometimento do fígado já está avançado, em estágio de cirrose ou mesmo de câncer hepático. Ou seja, por vezes, o diagnóstico pode ser tardio, quando o tratamento é mais difícil e complicado.
Anos atrás, o tratamento da hepatite C era demorado, feito com remédios agressivos e pouco eficazes. A cura acontecia apenas em 40% dos casos. Hoje o tratamento atinge taxas de cura superiores a 90% e é feito com dois comprimidos por dia e dura só três meses. Por essa facilidade atual, a OMS está propondo que os países promovam campanhas de detecção da infecção pelo VHC em suas populações. O Ministério da Saúde (MS) brasileiro, que tem implementado a política sugerida pela OMS, adquiriu grandes quantidades de testes rápidos para diagnóstico da hepatite C, que estão disponíveis gratuitamente para todo aquele cidadão que quiser realizar o exame. Esses testes estão mais facilmente disponíveis nos Centros de Testagem ou nos SAEs (Serviço de Assistência Especializada), podendo também ser encontrados em hospitais públicos e em alguns Postos de Saúde.
Embora qualquer pessoa tinha o direito de realizar o teste, ele é principalmente indicado em quem já recebeu transfusão de sangue ou plasma, quem tomou injeções no músculo ou na veia com seringas de vidro reutilizadas, quem teve internações prolongadas ou já compartilhou seringas e agulhas com outras pessoas. Esse risco é maior em quem foi exposto a alguma dessas situações até o início dos anos 90. A frequência de pessoas infectadas pelo VHC aumenta muito nas idades mais avançadas. Estudo do MS conduzido na década passada mostrou que pessoas com 60 anos ou mais apresentam chance três vezes maior de ser infectado pelo.
Esta chamada pretende alertar você, que fez uma cirurgia ou um tratamento prolongado com injeções e transfusões há mais de vinte anos atrás. Você pode não saber que tem essa infecção. Uma situação que é facilmente tratável hoje. O MS, desde 2015, tem adquirido os novos medicamentos e tentado ampliar o acesso ao tratamento. Nem todo mundo precisa fazer tratamento, mas se for preciso, os remédios são fornecidos gratuitamente pelo SUS.
Se você preferir, ao fazer check up, peça a seu médico que solicite o exame da hepatite C. Com um simples teste você pode ter uma informação que pode evitar sérios problemas à sua saúde, ou mesmo, salvar sua vida.
Doutor Francisco José Dutra Souto, médico hepatologista, professor titular da Faculdade de Medicina- Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT, Pesquisador do CNPq, Ex-vice-Reitor da UFMT (2008 – 2012). Ex-Diretor Superintendente do Hospital Júlio Müller-HUJM (2014). Ex-vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia.
E-mail: fsouto@terra.com.br