As águas da Praia do Pari, no rio Cuiabá, dentro da capital, são mais limpas e propícias para um mergulho do que as de algumas cachoeiras do Parque Nacional de Chapada dos Guimarães. A afirmação é da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema-MT), que realiza o levantamento da balneabilidade de várias praias e pontos de rios usados por banhistas em Mato Grosso.
Segundo o último relatório, de 2017, a Praia do Pari, em Cuiabá e a Praia Passagem da Conceição, em Várzea Grande, ainda são consideradas “águas próprias” e com condições “excelentes” para o banho. Enquanto as águas da Cachoeirinha, em Chapada dos Guimarães, são consideradas “próprias”, dentro do limite “satisfatório”, o que seria algo entre o bom e o regular. A mesma classificação mediana também é encontrada no rio Mutuca, também no caminho para Chapada dos Guimarães, outro ponto de banho muito procurado pelos cuiabanos que consideram o rio Cuiabá “sujo e esquecido” para o lazer.
O que faz o rio Cuiabá ser mais limpo do que o Mutuca e o Cachoeirinha é ausência da presença de coliformes fecais em números considerados problemáticos para a saúde. A balneabilidade é a medida das condições sanitárias das águas destinadas à recreação. A avaliação das condições de balneabilidade é realizada conforme a Resolução nº 274/2000 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), que classifica as praias em Própria e Imprópria. A constatação da presença de coliformes fecais, em um determinado corpo d’água (rio, mar, lago etc.) destinado à balneabilidade, acima dos limites estabelecidos pela legislação, é o que faz uma dessas regiões de lazer ser considerada “imprópria para banho”.
O lançamento de esgoto sanitário e a presença de fezes animais são as principais causas dos altos índices de coliformes fecais nas águas. “Essa presença de microrganismos patogênicos; aumenta a possibilidade de o banhista contrair alguma doença de veiculação como poliomielite, cólera, hepatite, febre tifoide, gastroenterite, doenças da pele e outras”, explica Sergio Batista Figueiredo, coordenador de monitoramento da qualidade ambiental da Sema-MT, e responsável pelo relatório anual de balneabilidade.
Sergio explica que o rio Cuiabá ainda é um rio considerado limpo em alguns trechos urbanos, e classe 2 em outras partes, porém caso as pressões não sejam reduzidas enfrentaremos um processo crítico da perda da qualidade da água. “Antes de entrar na cidade, o rio ainda está muito limpo, com sua capacidade de autodepuração preservada. Mas, assim que começa a receber o esgoto in natura, resíduos industriais e lixo, fica com uma classificação imprópria”.
As praias de da Comunidade do São Gonçalo e de Bom Sucesso, em Várzea Grande, são exemplos do esgotamento desse rio Cuiabá.
Nesses trechos, onde o rio já percorreu cerca de 30 quilômetros dentro da capital e recebeu esgoto sem qualquer tratamento de dezenas de córregos e rios degradados, como dos córregos Lavrinha, Barbado, Mané Pinto, Engole Cobra, Quarta-feira, São Gonçalo, Urubu e rio Coxipó, a classificação de balneabilidade é péssima, com taxas de 2419 Escherichia coli por NMP/100 ml, que faz o rio perder a possibilidade ter uma água onde é possível o contato humano direto.
Apesar do esgoto e dos efluentes industriais, o rio Cuiabá ainda é farto em pescado. É conhecido como um dos mais piscosos do mundo. Relatos de viajantes que conheceram o Cuiabá há duzentos anos dão conta da riqueza de suas águas. “O rio é farto de pescado, sobretudo de junho até fins de dezembro. Então é o alimento principal do povo. Pescam-se muitos pacus, dourados, piracanjubas, piaus, piracachiaras, giripocas, palmitos, cabeçudos, corimbatás, peixes-rei etc. É tanto peixe que os bois, cavalos e pretos, ou Guanás, vão curvados ao seu peso vendê-los pela cidade”, descreveu Hércules Florence no livro “Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas (1825-1829)”.
Hoje, mesmo recebendo 60% de esgoto doméstico de Cuiabá, o rio ainda sustenta uma comunidade de até mil pescadores, segundo dados da Federação dos Pescadores e Aquicultores do Estado de Mato Grosso (Fepesc-MT).
Pescando desde quando se entende por gente, Elias vive das águas dos rios Cuiabá, São Lourenço e Paraguai, onde passa temporadas de até 25 dias seguidos. Junto de amigos, ele aluga um veículo para levar canoas e barcos próximo aos rios. Neste período de pesca, eles dormem em barrancas, à beira do rio, e ele conta que até hoje nunca teve problema com as muitas onças-pintadas, que ainda vivem espalhadas pela região da Bacia do Rio Cuiabá.
“É uma coisa que eu gosto de fazer e sei fazer. Eu sinto que estou no meu dever de sustentar a minha família. Eu me sinto capaz de sustentar minha família, de prover o pão aos meus filhos”, conta Elias Rodrigues do Valle (45), ao Circuito Mato Grosso sobre a profissão que tanto adora: ser pescador.
Assim como Elias, Antônio Batista Pontes de Miranda, de 53 anos, pesca desde muito novo. Com oito anos de idade já empunhava a vara de pesca. Ele explica que a profissão é de família e a pesca era o único meio de sobrevivência dele. Apesar de ser a única renda, o pescador alerta que é difícil viver disso por conta da inconstância dos peixes e explica que, por conta disso, pesca em vários lugares como Barra do Aricá, Varginha e Barranco Alto para garantir a renda do mês. Elias Rodrigues também sobrevive da pesca com dificuldades, mas resiste como pescador no rio Cuiabá.
Em um bom mês de pesca, Antônio conta que pode pescar até 120 quilos de peixe; já em meses fracos, somente 50 quilos — entre os peixes que mais pesca, o pescador conta que pega piraputanga, bagre, piau, pacu, barbado, piranha e giripoca. Elias, por outro lado, explica que em condições perfeitas é possível pegar até 300 quilos de peixe.
O número pescado por Antônio Batista é pequeno se comparado ao estipulado pela Lei da Pesca. Por semana, o pescador profissional tem direito a até 125 quilos entre os meses de fevereiro e setembro. É importante ressaltar que de outubro até o fim de janeiro acontece o período da piracema, quando os peixes se reproduzem e o pescador fica impedido de pescar durantes quatro meses, mas recebe um auxílio do governo do Estado para suprir as necessidades.
Segundo Belmiro Lopes de Miranda, 53 anos, presidente da Fepesc-MT) ao todo estão espalhadas pelo estado 22 colônias, sendo uma por cidade. Cuiabá e Várzea Grande, banhadas pelo rio Cuiabá, têm as suas.
Quanto ao número de pescadores profissionais, o número chega aproximadamente a 10.000 em todo o estado; já para amadores esse número pode quadruplicar. As maiores concentrações de pesca ao longo do rio Cuiabá estão nas regiões de Santo Antônio, Barão de Melgaço e no cais próximo à colônia de pescadores de Várzea Grande.
A região onde estão os pescadores urbanos está próxima os pontos ondo o rio Cuiabá começa a sofrer as suas piores ameaças, o lançamento de esgoto doméstico, dejetos industriais que às vezes não são tratados como a legislação exige e o lixo.
A própria Sema autoriza que a Prefeitura lance efluente sem tratamento no rio. O nome dessa medida é Política do Enquadramento, prevista pela Legislação Nacional de Recursos Hídricos, a Lei nº 9.433 de 8 de janeiro de 1997. Segundo a medida, a comunidade tem que se questionar sobre o rio que tem o rio que quer ter e o rio que pode ter, e assim aceitar as medidas necessárias para poder viver com as concessões que aceitar pelas águas.
No caso do rio Cuiabá, evitar que o esgoto doméstico chegue ao rio exige uma reformulação urbana radical da cidade. Esse enquadramento custaria bilhões, por isso, em nome do “bem comum”, a Sema, o órgão de dominalidade (que detém a tutela do cuidado) das águas do rio Cuiabá, é obrigada a aceitar que determinada quantidade de esgoto seja lançado até que seja possível tratá-lo como exige a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que repassou aos municípios a responsabilidade sobre o saneamento das cidades.
O responsável por atestar o lançamento desse esgoto, Nédio Pinheiro, coordenador de Recursos Hídricos da secretaria, afirma que impedir esse lançamento de esgoto no rio Cuiabá é praticamente impossível. Apesar da constatação, Nédio pondera que o rio já esteve em estado mais crítico. “Entre 2000 a 2008 muitas medidas foram tomadas para melhorar as condições das águas do rio Cuiabá. Foram construídas Estações de Tratamento de Esgoto e muitas redes coletoras foram construídas na cidade. Hoje, podemos dizer que o rio Cuiabá começa a sair de uma situação mais crítica para entrar em uma situação confortável”.
Para a superintendente de infraestrutura, mineração, indústria e serviços da Sema, Márcia Vilela, a recuperação das Áreas de Proteção Ambiental do rio Cuiabá é outra boa notícia. “Vemos nitidamente que muitas partes urbanas das margens do Cuiabá, onde existia uma ocupação intensa da população no passado, desde a década de 1990 começou a se recuperar. Já vemos que existe uma volta da vegetação principalmente na área da alameda do rio. O que é um ótimo sinal, pois no caso do rio Cuiabá a preservação de sua perenidade depende principalmente desta vegetação”, diz.
Apesar do otimismo, os diretores do departamento de recursos hídricos da Sema concordam que o Cuiabá ainda não está fora de risco. A fonte de 96% do abastecimento da população Cuiabá e de grande parte de Várzea Grande, Santo Antônio de Leverger, Rosário Oeste e Barão de Melgaço ainda precisa de políticas públicas que cuidem de suas águas e garantam que o lixo, o esgoto doméstico e que as indústrias não lancem dejetos além de sua capacidade natural de depuração.
Esgoto doméstico é o maior impacto do rio Cuiabá
Conforme levantamento do Instituto Trata Brasil, Cuiabá e Várzea Grande ocupam, respectivamente, o 67º e o 89º lugar no ranking do saneamento das 100 maiores cidades do Brasil. Dentre os serviços contemplados no termo “saneamento básico” está o esgotamento sanitário, ligado, também, a graves problemas de saúde.
A falta de urbanização no crescimento dessas cidades fez do rio Cuiabá o primeiro alvo para o lançamento dos dejetos domésticos. Segundo o pesquisador Tadeu Latorraca, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), o esgotamento sanitário é um dos principais problemas desse rio e algo que tem sido passivo há muito tempo.
“Com certeza, a qualidade da água do rio Cuiabá caiu muito durante os últimos anos em função do aumento populacional, e a habitação inadequada, que acabam gerando o lançamento de esgoto in natura, direto no rio”, afirmou o pesquisador.
Atualmente, apenas em Cuiabá, cerca de 50% de todo o esgoto produzido pela população não chega a uma Estação de Tratamento de Esgoto e vai parar diretamente no rio. Além desses, restam ainda outros 10% de esgoto que, embora coletado, não recebe tratamento. Ou seja, são, pelo menos, 60% de esgoto in natura lançados, apenas pela capital, diretamente nas águas do principal rio do estado.
No entanto, segundo Latorraca, o número é ainda muito pior, já que nem todos os 40% de esgoto coletado, conforme dados da concessionária Águas Cuiabá, recebem o tratamento adequado.
“Nós temos um sistema implantado, mas que não funciona como deveria, porque não há todas as ligações domiciliares”, afirmou o pesquisador. Segundo ele, além de estações elevatórias que não funcionam e que, por consequência, também lançam esgoto no rio, o sistema de esgotamento ainda tem redes ociosas e tratamento falho.
“Desses prováveis 50% coletados, ele [o esgoto] entra e sai com tratamento primário. Há uma retenção de sólidos, mas não há um tratamento secundário, terciário, que é o que seria ideal. E aí, se eu não tenho o tratamento, quando eu lanço esse esgoto, mesmo passando pela estação, eu vou estar condicionando o rio, a fauna e a flora, em função da carga orgânica elevada existente após esse tal tratamento. Além da carga orgânica, tem a questão de microrganismos e alta concentração de coliformes fecais”, considerou Latorraca.
Conforme o Instituto Trata Brasil, Cuiabá possui ao menos 6.615 ligações ociosas, o que representa mais de 15,6 milhões de metros cúbicos de esgoto in natura sendo despejados diretamente no Rio Cuiabá.
Para o pesquisador, isso acontece porque não há manutenção nas redes, além da falta de incentivo à população e fiscalização do município. Segundo ele, quando uma rua não tem rede de esgoto e o munícipe não possui uma fossa séptica em casa, a tendência é lançar os dejetos às galerias de águas fluviais, diretamente na drenagem da prefeitura.
“O bairro renascer, por exemplo, está bem na beira do Barbado e provavelmente a população joga direto lá. Não lançam na rede, mas ligam um tubo direto no canal”, explicou Latorraca.
A observação também foi feita pela concessionária Águas Cuiabá. O diretor Luiz Fabbriani explicou que a instituição não tem controle da ligação das casas à rede de esgoto, porque não tem mecanismos legais para fiscalizar. “A empresa é responsável por instalar a rede de esgoto, mas eu não tenho como obrigar um morador a ligar o esgoto à rede. Eu não posso entrar na casa dessa pessoa e fazer isso”, pontuou.
Tanto para a empresa quanto para o pesquisador, é necessário, portanto, aumentar a fiscalização, que é de responsabilidade das prefeituras.
Para o secretário Municipal de Ordem Pública, coronel Leovaldo Emanuel Sales da Silva, o incentivo sugerido é viável, mas precisa ser bem estudado para ser implantado pelas duas entidades.
À frente do órgão responsável pela fiscalização, o coronel Sales, destacou que a prefeitura precisa contar com o auxílio da população para poder, ao menos, amenizar os problemas de saneamento básico na capital. Ele diz que tal como a concessionária de água e esgoto, o município também não tem mecanismos para saber qual casa está ou não interligada à rede coletora de esgoto.
“Essa fiscalização, via de regra, é provocada”, comentou o secretário. “Nós temos linhas do disque-denúncia, e as pessoas, quando o esgoto está a céu aberto, ligam nesses números. Então eu mando a equipe lá, ela fiscaliza e notifica o responsável por aquele esgoto que não foi ligado à rede adutora da via”, explicou.
“Nosso mecanismo é quando o esgoto aflora. Porque, se está embaixo da terra, como eu vou saber?”, questionou Sales. “O que está em situação irregular vai aflorar e aparecer”.
Em Várzea Grande, os números chegam a alarmar ainda mais. Atualmente, a rede de esgoto municipal, que é de responsabilidade do Departamento de Água e Esgoto, ligado à Prefeitura, chega a apenas 29% da população. Com isso, o município figura entre os 10 piores das 100 maiores cidades do Brasil.
Levantamento do Instituto Trata Brasil mostrou que na cidade vizinha à capital, embora a passos lentos, a situação caminha para a melhora. De 2016 para 2017, o número de novas ligações de esgoto aumentou pouco mais de 1%, enquanto em Cuiabá não passou de 0,5%.
Cuiabá ainda corre atrás do prejuízo e foi uma das capitais que mais investiu em saneamento em todo o país. Entre 2012 e 2016, quando a CAB Cuiabá era responsável pelos serviços de água e esgoto, a capital teve evolução percentual de mais de 13%, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida da população.
De acordo com o pesquisador, tem grande parcela de ajuda o crescimento do setor imobiliário. Isso porque os novos condomínios, e até novos bairros criados pelo governo, já fazem sua própria rede coletora e estação de tratamento, conforme determina a legislação brasileira. Assim, contribuem para evitar que novos efluentes sejam lançados de forma irregular no rio Cuiabá. Porém, nem tudo são flores. Conforme a Sema, ainda é necessário que haja fiscalização mais efetiva em cima dos empreendimentos, já que, não raramente, uma casa ou outra é multada por estar de forma irregular, devido à falta de manutenção nessas estações de tratamento, que rapidamente acabam danificadas lançando dejetos diretamente nos córregos.
A mesma observação foi levantada pela diretora de Regulação e Fiscalização da Agência Municipal de Regulação de Serviços Delegados (Arsec), Rosidelma Francisca Guimarães dos Santos. Segundo ela, recentemente, um condomínio de luxo construído na saída do município teve uma sequência de casas multadas por ter desviado a ligação de esgoto.
“Acontece que a empresa apresenta projeto da prefeitura para o condomínio, constrói, mas os moradores fazem reforma e mudam tudo”, explicou. Isso é um dos motivos pelos quais a fiscalização da prefeitura fica prejudicada, conforme o secretário Sales.
“Todos os projetos hidráulicos são analisados na hora de se expedir o alvará de construção, e a prefeitura só expede o Habite-se quando a obra está conforme o projeto apresentado”, pontuou Sales.
No entanto, o pesquisador Tadeu Latorraca ainda observou que resolver apenas a questão do esgotamento sanitário em Cuiabá e Várzea Grande não é suficiente para resolver todos os problemas do rio.
Educação ambiental
Atrelado a todos os apontamentos dos órgãos envolvidos está a educação ambiental da população e empresas instaladas nos municípios. A observação é feita pelo publicitário Jean Peliciari, diretor do projeto Teoria Verde. Atualmente, apenas em duas ações feitas com auxílio de voluntários, o Teoria Verde já retirou 60 toneladas de lixo das margens do rio Cuiabá.
“O problema do lixo não é somente do município. Nós temos o município, temos a população e temos também as empresas, que são grandes poluidoras”, comentou o diretor. “Nós precisamos, sim, fazer a limpeza do rio, assim como fazemos de praça e de rua. É muito lixo que estamos tirando do rio todo ano. Então, sim, é papel do município dar essa atenção maior para a margem do rio”, completou.
Para Jean, os problemas ambientais sofridos nos dias de hoje são reflexos culturais, mas que precisam ser minimizados com auxílio da população e do poder público. “É um erro as pessoas pensarem que porque pagam o IPTU a prefeitura que tem que limpar tudo. É um pensamento de ignorante. Essa pessoa não teve a educação lá na base e talvez traga isso enraizado, de que o lixo que ela gera não é um problema dela”, avaliou.
Ainda conforme o diretor, é nítido que a sociedade ainda é cética em relação aos problemas ambientais. Segundo ele, ainda hoje há pessoas que lhe dizem que o trabalho realizado pelo Teoria Verde é apenas “enxugar gelo”.
“Nós estamos fazendo a nossa parte e tentando chamar a atenção para o problema. Ou seria um ‘deixa pra lá esse lixo?’ É esse tipo de pensamento que nós trabalhamos para quebrar”.
Comitê da Bacia Hidrográfica é fundamental para proteção do rio
O rio Cuiabá tem peculiaridades que fazem a sua proteção ser um verdadeiro quebra-cabeça. Suas nascentes estão em Mato Grosso e boa parte de seus 980 quilômetros também é mato-grossense, porém alguns poucos quilômetros desse rio passam em Mato Grosso do Sul, e por essa questão o Cuiabá acaba sendo federal.
Um pequeno detalhe que faz com que boa parte das licenças de uso das águas do Cuiabá seja emitida por um órgão federal, a Agência Nacional de Água (ANA). Essas licenças, chamadas de outorgas permitem que indústrias e empresas privadas usem, de forma gratuita e sem qualquer ressalva ou contrapartida social e ambiental, as águas do rio Cuiabá para obter lucro.
E o uso é cada vez mais intenso. Um levantamento do Circuito Mato Grosso junto à ANA revelou que os maiores captadores de água do Cuiabá são as empresas de refrigerantes e bebidas, seguidas de curtumes, frigoríficos e até uma indústria belga de gelatina. E claro, a empresa Águas Cuiabá, responsável pelo saneamento da capital, privatizado em 2012, pela Prefeitura Municipal, que cobra para levar a água do Cuiabá tratada até as residências cuiabanas.
O levantamento apontou que a BRF S/A capta em volume anual 4.348.800 m³ de água do rio Cuiabá, água suficiente para abastecer a capital durante dois meses, a Norsa (antiga Renosa que fabrica a Coca-Cola) retira 1.051.200 m3, a Ambev S/A 1.752.000 m³, a PB Brasil Indústria e Comércio e Gelatinas 1.226.400 m³, o curtume Viposa 158.400 m³ e o Sebo 60.000 m³ . Todas essas empresas também são campeãs de lançamento de efluentes, ou seja, dejetos nos rios.
O licenciamento ambiental estadual obriga todas essas empresas a lançarem esses efluentes após um tratamento para que não poluam o rio Cuiabá. Porém, em alguns casos, o sistema acaba não funcionando devidamente e falhando. Empresas como a Ambev, Norsa e PB, por exemplo, respondem por Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), por conta de poluição causada ao meio ambiente.
Apenas a Ambev respondeu aos questionamentos do jornal. Segundo a empresa, a preservação dos recursos hídricos é um pilar central de sua atuação. A unidade em Cuiabá renovou recentemente as licenças ambientais e as instalações estão adequadas e em conformidades com as melhores práticas, em respeito ao meio ambiente e à população.
A empresa também contribui para o Projeto Água para o Futuro, do Ministério Público do Estado, idealizado pelo promotor de Justiça Gerson Barbosa. O projeto busca também ser um apoio de proteção do rio Cuiabá, pois mapeia e tenta salvar as nascentes e os córregos que ainda estão na área urbana do município.
“Encontramos 175 nascentes confirmadas e 245 possivelmente aterradas e lançamos um aplicativo de celular pelo qual a população pode acompanhar a evolução desse trabalho e conhecer as nascentes e o estado de proteção dessas e nos ajudar encontrar essas importantes áreas formadoras de rios na cidade”, explica Gerson.
Um exemplo dessas regiões é o caso das nascentes do córrego Barbado, onde está localizado o Hospital Central; a do córrego Gumitá, onde está o Hospital de Câncer; a do córrego Quarta-Feira, nas proximidades da Rodoviária; e a do córrego Bangue, na MT 010.
O trabalho de mapeamento de nascentes é um apoio para encontrar as áreas prioritárias para a conservação da cidade. O mecanismo também possibilita que o MP tenha ferramentas para combater crimes ambientais. Muitos inquéritos civis são instaurados a partir das irregularidades encontradas durante o levantamento do projeto.
Recentemente o projeto também mapeou as nascentes do Ribeirão do Lipa, muito próximas a uma área de grande crescimento urbano residencial.
“O ideal seria o Poder Municipal usar essas informações para que evitasse que novas ocupações destruam áreas de nascentes e córregos, como já foi tão intensamente feito no passado urbano de Cuiabá. O Ribeirão do Lipa é um importante afluente do rio Cuiabá. O ideal seria que a cidade tivesse um planto diretor para guiar essa ocupação”, explica.
Segundo a ANA, outra importante ferramenta seria a instauração do Comitê da Bacia Hidrográfica do rio Cuiabá. Uma instância que poderia fazer uma gestão do uso da água e exigir contrapartidas que poderiam reforçar e apoiar o poder público na proteção do rio Cuiabá.
A Lei nº 9.433/1997 prevê a participação social por intermédio dos Comitês de Bacia, que são os responsáveis pela aprovação/acompanhamento dos Planos de Recursos Hídricos da bacia hidrográfica que devem conter prioridades para outorga, por exemplo.
Atualmente apenas a margem esquerda do rio Cuiabá tem um Comitê de Bacia instaurado. Nessa porção do rio o licenciamento é estadual e não há indústrias de grande porte instaladas. “Cabe à população se movimentar e instalar o Comitê. Enquanto não se fizer isso, não há como exigir do poder público e das empresas um uso participativo do rio”, explica Sérgio Figueiredo, da Sema.