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Agredidos na Fundação Casa narram violência

Dois anos atrás, o Fantástico mostrou com exclusividade imagens chocantes. Menores sendo brutalmente agredidos dentro da Fundação Casa, em São Paulo, a antiga Febem. O que aconteceu depois disso? A Justiça marcou para o mês que vem a primeira audiência com os agressores. Nós conversamos com três dos rapazes espancados e eles contaram novos detalhes daquela noite de violência.

Quem olha esses três jovens assim – no videogame, na bicicleta – nem imagina a violência e as humilhações que já enfrentaram.

“Nesse momento aí ó, recebi um tapa”, relata. Na sequência, ele é agredido com um chute.

Fantástico: Falavam o que pra você?
Menor: Que nós era a doença. Eles era a cura.
"Eles", no caso, são funcionários da Fundação Casa, a antiga Febem de São Paulo. As agressões aconteceram depois de uma tentativa de fuga.
Era noite de sexta-feira, 3 de maio de 2013.
Fantástico: Foi a primeira vez que você apanhou lá?
Menor: Não. Já tinha apanhado várias vezes. Isso daí era normal.
“Parece que era lei lá dentro bater em nós”, conta outro rapaz.

Três meses depois desta sessão de espancamento, o Fantástico teve acesso às imagens e denunciou. Com o caso perto de completar dois anos, vamos mostrar como estão os agredidos e os agressores. Também há denúncias novas, envolvendo mais pessoas e mais violência.
Com 12 anos, este adolescente participou de um assalto.

Fantástico: A arma você conseguiu como?
Menor: Era uma arma de brinquedo, aquelas de videogame. Eu tava bebendo uns gorós, tava quase bêbado. Eu queria ir pra uma festa. Não tinha dinheiro. Fui roubar o carro. Fui preso.
Ele estava com 13 anos quando foi filmado sendo espancado por funcionários dentro da unidade João do Pulo, na Zona Norte da capital paulista.
Fantástico: O que aconteceu?
Menor: Tem uns moleque que botou fogo. Eu queria fugir mesmo. Queria ir embora.
Fantástico: Quando você vê esse vídeo, o que você sente?
Menor: Só dá raiva mesmo.
Vagner Pereira da Silva, o então diretor da unidade, está do lado de fora da sala. Nas imagens, ele aparece em silêncio. Mas um dos menores faz uma revelação contra o diretor, algo que não tinha sido dito até agora.
“Ele falou assim: ‘Pode bater. Quero nem saber. Pega esse aqui e já arregaça’. Diretor não bateu em ninguém, mas só ficou olhando. Mandando os funcionários bater”, conta o menor.

Os adolescentes contam que, depois do espancamento, eles foram obrigados a tomar banho gelado para ir ao Instituto Médico Legal. Depois de tentativas de fuga e rebeliões, é preciso fazer, no IML, o exame de corpo de delito.

“Jogou nós na água gelada pra não ficar com hematoma, eles falou”, diz.

Os funcionários ainda teriam feito ameaças: os menores não podiam contar para ninguém do IML que tinham apanhado. Mas um dos adolescentes diz que não obedeceu.

“Falei que eu tinha apanhado e a mulher falou assim: ‘Eu não te perguntei nada’. Fiquei quieto. A mulher falou assim, que não queria nem saber”, diz um menor.

A Secretaria de Segurança Pública disse que o adolescente "foi regularmente atendido por um médico legista, que elaborou um laudo e não constatou lesões".

E o que teria acontecido depois? Os jovens contam que ficaram de castigo numa espécie de solitária. “Cinco dias de tranca. Tranca é ficar dentro daquela sala ali, sozinho. Eles apaga luz, dá comida na hora que eles quiser, vai no banheiro a hora que eles quiser” 

Este outro rapaz afirma que ficou com problemas de saúde. “Eles chutavam as partes íntimas. Foi muito chute, me machucou bastante. Deu um problema na hérnia escrotal. Teve que operar. Eu não posso fazer muito esforço. Senão, dói”.

A Fundação Casa confirmou a cirurgia de hérnia e vai apurar se as agressões realmente foram o motivo. A história desse rapaz – hoje com 18 anos e que foi internado por tráfico – é marcada por uma tragédia. Com cinco anos, viu a mãe ser assassinada a tiros pelo pai. Ela estava grávida de sete meses. A avó do jovem, mãe da vítima, lembra de tudo.

“O mais velhinho, de seis anos, falou assim: “Vó, meu pai matou a minha mãe. Matou. Vai lá ver’, lembra a avó.
Hoje, fora da Fundação Casa, o rapaz não deve mais nada à Justiça. A namorada de 14 anos está grávida de dois meses. “Trabalhar. Correr atrás pra ter alguma coisa na vida”, diz.

Em agosto de 2013, assim que a reportagem do Fantástico foi exibida, os 10 menores agredidos foram transferidos, por medida de segurança. O adolescente, que tinha 13 anos na época, foi para uma unidade na cidade de Arujá, na Grande São Paulo. Ele diz que lá acabou espancado de novo.
Menor: Chegou quatro funcionários e começou a me bater.  De soco e tapa.
Fantástico: E eles sabiam do vídeo?
Menor: Sabiam.

“Todas as denúncias que chegam elas são rigorosamente apuradas. Nós vamos processar os servidores eventualmente envolvidos”, afirma Berenice Gianella, presidente da Fundação Casa.

Por causa das agressões na João do Pulo, a Fundação Casa demitiu três funcionários que aparecem nos vídeos: Edson Francisco da Silva, José Juvêncio e o então diretor Vagner Pereira da Silva.

Um outro agente, Maurício Mesquita Hilário, pediu licença médica um dia após a reportagem ir ao ar. Ele deve ser demitido assim que voltar ao trabalho. Agora, os quatro são réus acusados de crime de tortura. O processo contra eles segue em segredo de justiça. Nenhum dos funcionários que agrediram os menores quis gravar entrevista.

Outro agente – que faz ameaças – foi suspenso por 29 dias e voltou a trabalhar. João Batista Joaquim também responde por tortura. A pena pode passar dos 10 anos de prisão.

A advogada do ex-diretor Vagner Pereira da Silva disse, em nota, que ele não estava presente no momento das agressões, que não deu qualquer ordem nesse sentido e que a Justiça reconhecerá a inocência dele.

E agora, mais uma denúncia de espancamento. Dessa vez, na unidade Cedro, Zona Oeste de São Paulo. Quinze menores afirmam que, depois de uma rebelião no mês passado, foram agredidos por funcionários durante três dias. “Foram usados cassetetes, cintos, socos, chutes. A violência é mesmo institucionalizada. É uma prática da Fundação Casa que já vem de muitos anos”, observa a defensora pública Fernanda Penteado Balera.

“A gente procura capacitar os servidores, mostrar para eles qual é a conduta correta, mas caráter não se capacita. Infelizmente, a gente tem funcionários que têm desvio de conduta”, admite a presidente da Fundação Casa, Berenice Giannella.

“Agressão não recupera ninguém. Possivelmente quando eles saírem eles vão estar mais violentos do que quando eles entraram”, afirma defensora pública.

E como estão os 10 menores agredidos na João do Pulo, em 2013? O Fantástico apurou que todos terminaram de cumprir a medida de internação e ganharam liberdade. Nas ruas, sete voltaram ao crime. Quatro foram flagrados vendendo drogas e três, roubando.

“Uma instituição que deveria ensinar valores, padrões de comportamento aos adolescentes infratores acaba fomentando neles a convicção de que a lei da força supera a força da lei”, diz o promotor de Justiça da Infância e da Juventude, Fábio José Bueno.

Este rapaz é um dos agredidos. Entrou na Fundação Casa porque roubou um celular e um relógio, e vendeu drogas. “Eu saí pior porque eu continuei cometendo crime. Completei a maioridade e continuei no tráfico. Eu fui detido novamente”, confessa.

Ele conseguiu um habeas corpus e deixou a prisão há três semanas. Já o garoto que tinha 13 anos na época das agressões diz que mudou de vida. Fez curso de barbeiro, voltou a estudar e vai ser pai em breve, aos 15 anos. “Não queria, mas Deus deu pra mim. É um anjinho de Deus. Vamo que vamo”.

Depois de tanta tristeza, a mãe e a avó têm orgulho do adolescente. “Hoje, ele é um outro menino. Eles tavam pagando já pelo erro deles. Não precisavam eles estar batendo nem agredindo”, diz a mãe. “Aquilo lá não é uma escola. Aquilo lá é o caminho da perdição”, diz a avó.
Adolescente: Quero conquistar meus objetivos, ajudar minha família e bola pra frente.
Fantástico: Voltar para Fundação Casa?. 
Adolescente: Nunca mais. Nem pensar.

Fonte: G1

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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