Em 2023, durante os trabalhos de levantamento e inventário dos objetos pertencentes ao acervo etnográfico do Centro Cultural Ikuiapá, instituição ligada ao Museu do Índio/ Rio de Janeiro, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, localizado no Centro Histórico de Cuiabá, que me encantei, particularmente, com o cesto coniforme Agahü, confeccionado pelo povo Mehináku, da Terra Indígena Parque do Xingu.
A sistematização das informações desenhou o enorme potencial do acervo etnográfico do Centro Cultural Ikuiapá. Aduz seu comprometimento em evidenciar as identidades dos povos indígenas, suas culturas, suas epistemologias plurais. Para além de sua rica materialidade, o artefato, ao se deixar desvendar em subjetividades, aponta trajetórias ainda desconhecidas e desvalorizadas pelas concepções ocidentalizadas.
Assim, não se pode pensar um objeto etnográfico, seja de que natureza for, distanciado de sua imaterialidade, da presença individual e coletiva daquele que confecciona e daquele que usa, do somatório de saberes ancestrais. Ao ser conduzido ao espaço ocidental, quando se aparta de sua funcionalidade para se dar a conhecer ao universo dos não indígenas, consiste em “uma intervenção de descolonizar a narrativa instituída sobre os corpos indígenas”, na percepção do líder indígena Ailton Krenak (2023). A explanação de acontecimentos que gira em torno dos objetos etnográficos, mesmo daqueles não inseridos na categoria “alto padrão técnico”, se coloca em oposição às práticas excludentes e ambientalmente predatórias. O artefato cesto coniforme Mehináku é um exemplo disso, conforme me ensinou Loike Kalapalo.
Vazante. Um homem Mehináku à beira do rio. Aguapés em flor recobrem o rio. Suas águas se mantêm em segredo. Não se deixam revelar. O homem Mehináku se enamora de Agahü, mulher-vegetal protetora das águas. A quer para si. A cada dia, atrai sua atenção e, em súplica, pede sua aproximação. Quer se casar. E o tempo passando. O homem apaixonado. A mulher vestida de aguapé. Na aldeia, o homem Mehináku não reconhece Agahü. Ela se dá a conhecer. O homem Mehináku quer casar. Agahü é aceita na aldeia. O homem Mehináku e a mulher-vegetal se casam. Agahü faz comida. De sabor diferente. Todos querem da comida de Agahü. Sempre às escondidas, faz com gosto. A mulher não revela o preparo da comida cobiçada. Desconfiados, querem conhecer o sentido do gosto. Às escondidas, a mulher é vista a urinar na panela de barro. Prepara chicha de mandioca. Assa carne no moquém. A aldeia não quer Agahü. Agahü revela o segredo do sabor de sua comida. Deixa-se ver como aguapé, que dá o sal vegetal. Que faz aparecer o cesto-coador. Agahü volta ao rio. Cuida das águas do rio. Não deixa a terra enxugar a água.
O cobiçado condimento encontra-se nas transações de troca de produtos em rituais interétnicos. Considerado de grande valor, é atribuidor de prestígio político e econômico. Pessoas Mehináku e sal vegetal são agentes recíprocos no entendimento de um e outro. O humano, ao vivenciar o inumano que habita o vegetal que dá forma e utilidade ao cesto Agahü, ao conseguir atinar com grandeza e amplidão seus saberes ancestrais, transcende.