Internacional

Adolescente que ficou detida em abrigo nos EUA revela trauma

Uma das primeiras lembranças que vêm à mente da estudante Anna Stéfane Radeck, de 17 anos, quando pensa nos Estados Unidos é a sequência de injeções que levou quando foi levada a um abrigo para menores em Chicago. A jovem falou com exclusividade ao G1 sobre a experiência vivida a mais de 8,5 mil km de casa nos 20 dias em que ficou detida com outras adolescentes estrangeiras. "Trataram a gente como terrorista".

Um mês e meio depois de ter voltado para casa, a jovem afirma estar traumatizada. “Está sendo muito difícil. Quando eu cheguei não tinha caído a ficha ainda que já estava aqui. E agora eu não consigo dormir a noite inteira, acordo, ainda tenho pesadelo”, disse Stéfane em entrevista concedida em sua casa, em Embu Guaçu, na Grande São Paulo.

Segundo a mãe da adolescente, Liliane Carvalho, desde que chegou ao Brasil a filha teve crise de pânico, enfrentou dificuldade para voltar a frequentar a escola e recebe acompanhamento médico e psicológico.

Procurada pelo G1, a assessoria da Embaixada dos EUA no Brasil disse, em nota, que, “devido às questões de privacidade da lei americana, não podemos fornecer quaisquer detalhes sobre o caso Anna Stéfane Radeck. Essas informações são confidenciais”.

Em 10 de agosto, Stéfane embarcou no Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, na Grande São Paulo, até os Estados Unidos para comemorar seu aniversário com uma tia que vive lá. Quando o avião pousou no Aeroporto de Detroit, já em 11 de agosto, em vez de a estudante seguir para o saguão para pegar outro avião que a levaria a Orlando, ela foi levada a uma sala da imigração.

Preocupada, enviou mensagens de texto para a mãe, que estava no Brasil, explicando que não tinha conseguido pegar a conexão.

Chegada
A jovem aguardou cerca de 10 horas até que as autoridades aduaneiras chegassem a uma conclusão: que o caso dela deveria ser investigado. “Eles alegaram o desacompanhamento e o tráfico de menor e prostituição, que tem muito lá. Então eles tinham que investigar se eu não seria vítima disso”, disse a adolescente. “E me disseram que eu iria para um abrigo para crianças em Chicago.”

 Seis horas de estrada depois, a jovem chegou ao prédio de quatro andares em um bairro residencial da cidade. Dos quatro pavimentos, um era totalmente ocupado por meninas e outro, por adolescentes do sexo masculino.

Seu corpo e seus pertences passaram por um processo de higienização. “Eles colocaram um saco preto na minha cabeça, com tratamento de piolho, e lavaram todas as minhas roupas. Antes eles revisaram tudo com luvas, como se eu tivesse vindo de um país com doenças bem precárias.”

Ela ganhou um uniforme (uma camiseta azul e uma calça de moletom cinza) e um número: 58. Era por ele que os funcionários tinham acesso aos documentos pessoais dela e ao prontuário médico. “Deram vacinas, fizeram testes de gravidez e teste de verme também”, disse. “Eles não diziam para que eram as vacinas. Foram nove e uma na veia, tudo de uma vez.” Posteriormente, a jovem descobriu que recebeu doses de vacinas que já havia tomado, como de HPV e de tétano.

Depois, foi colocada em um quarto com três jovens de outros países. Em um dos beliches, pensou com tristeza nos pais (que só ficariam sabendo do abrigo três dias depois) e dormiu com medo e incerteza quanto ao que aconteceria.

Rotina
Os horários eram seguidos à risca. Todas as cerca de 50 internas eram acordadas às 5h20 para se banhar e, em seguida, tomar café da manhã. Depois, a rotina era de trabalhos manuais (lavar roupa e louça, varrer e limpar o abrigo), aulas de inglês básico (com professores que falavam espanhol para atender as muitas adolescentes ilegais de origem hispânica que estavam lá) e uma hora de exercícios físicos.

A disciplina era rígida, segundo a adolescente. “Não tinha agressão. Eles não podiam nos tocar. Mas tinha tortura psicológica”, disse. “Sempre obrigando a gente a fazer as coisas que eles mandavam, porque se a gente não fizesse eles iam atrasar o nosso caso e a gente ia demorar para sair de lá.”

Televisão e internet eram proibidos. “A gente ficava isolada do mundo, não tinha acesso a nada. Tinha para ler uns livros infantis em espanhol.”

A jovem afirmou que as refeições eram precárias. Segundo ela, os alimentos eram escassos e houve vezes em que ela não se alimentou. Os internos, porém, tinham autorização para cozinharem comidas típicas de seus países.

Apenas duas ligações por semana para parentes eram permitidas, cada uma com duração de 10 minutos. As jovens precisavam estar em seus quartos às 21h30. Os funcionários permitiam que as internas rezassem até as 22h. Depois disso, as luzes eram apagadas e o silêncio, absoluto.

A espera
Inicialmente, as autoridades tinham informado que a situação de Stéfane se resolveria em três dias. Nesse período, sua mãe, Liliane, pediu ajuda ao Consulado brasileiro em Chicago e viajou com documentação necessária para provar que a filha pretendia apenas passear. Mesmo assim, a burocracia ampliou a estada da menina no abrigo.

Procurado, o Itamaraty informou que, desde o dia em que a mãe da jovem pediu auxílio, em 15 de agosto, o Consulado-Geral “manteve contato constante com o abrigo, com a genitora da menor e com as autoridades migratórias a respeito do caso”.

Segundo comunicado do Ministério das Relações Exteriores, houve “estreito acompanhamento do caso da menor por meio de contatos com as autoridades americanas, para assegurar que todos os seus direitos estariam sendo respeitados, entrevistas com a genitora da menor, contatos com as autoridade migratórias americanas para solicitar urgência na avaliação do caso”.

Amizades
O tempo passou e o dia 26, quando Stéfane completou 17 anos, chegou sem festa. Naquele dia, ela pôde se encontrar e ficar com a mãe durante uma hora em um local fora do abrigo. Tudo sob vigilância.

O tempo fez com que as meninas do abrigo se unissem, principalmente com outras sete brasileiras (a maioria mineira) que, assim como a adolescente, aguardavam a Justiça decidir sua situação. O convívio fez com que elas trocassem telefones e, atualmente, com todas já de volta ao Brasil, passassem a se falar via WhatsApp.

O contato também era feito com jovens de outros países. “Tinha de El Salvador, Guatemala e Honduras. Todas ilegais porque entram pela fronteira com o México sem passaporte, sem nada. A gente tentava se comunicar em espanhol.”

Enquanto a filha seguia detida, sua mãe buscava, com auxílio de amigos que moram nos Estados Unidos, provar para a Justiça que a filha tinha ido passear, apenas. No fim de agosto, uma audiência foi, finalmente, marcada.

Retorno
Após analisar o caso, uma magistrada liberou a garota. “A juíza falava ‘sorry’ [desculpa] a todo o momento”, afirmou Liliane. “E que a Stéfane não precisaria passar por aquilo”, disse.

A Embaixada dos EUA no Brasil informou que não poderá informar detalhes sobre o caso. O Itamaraty, porém, disse que, “quando se busca a reunião familiar, é necessário seguir processo burocrático prévio conforme as regras especificadas na legislação americana”. “São exigidos vários documentos para a comprovação dos laços familiares que, uma vez entregues, são analisados pelas autoridades daquele país. Alguns casos são submetidos à apreciação de juizado próprio, o que pode levar tempo considerável.”

De acordo com o Itamaraty, no caso de Stéfane, a permanência dela no abrigo “seguiu o procedimento adotado pela imigração norte-americana” em situações envolvendo menores desacompanhados. “A experiência parece indicar que, em caso de denegação de entrada nos Estados Unidos de pessoas maiores de idade, estas são, em geral, deportadas de maneira expedita. Quando se trata de menores, há, no entanto, disposição legal americana que determina o encaminhamento a abrigos até que haja manifestação da justiça especializada.”

O retorno ao Brasil ocorreu em 2 de setembro. Na madrugada daquele dia, ela desembarcou em Cumbica após uma longa viagem com a mãe. Ela abraçou o pai e o irmão e com a família voltou para casa, em Mogi Guaçu, na Grande São Paulo.

A mãe de Stéfane diz que a juíza norte-americana que liberou a filha disse que “as portas dos Estados Unidos sempre estarão abertas para ela e para a família”. Questionada se pretende voltar para lá, a adolescente é categórica: “Não tenho vontade nenhuma. Eles colocam o medo na gente, mas não é pelo medo, é porque estou decepcionada pelo jeito que eles tratam a gente. Trataram a gente como terrorista, como se a gente tivesse cometido um crime.”

Fonte: G1

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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