Inesquecível lição acerca do tempo… Recordo-me como se fosse hoje. Eu retornara poucas horas antes do único hospital que existia então na cidade de Dourados, Mato Grosso do Sul. Era um dos dias iniciais da primavera de 1975. Trazia nos braços “pingo de ouro”, meu primeiro filho que havia nascido dois dias antes… Era lindo, rechonchudo e vestia uma roupinha amarela. Na pequena varanda de minha casa de madeira, na aldeia onde eu morava, várias índias Guarani, Terena e Kaiowá estavam à minha espera… Cada qual trazia uma candura, um mimo, um sorriso, um abraço… Algumas me presentearam com milho “saboró” pilado, feito em quirela, para que eu, alimentando-me do caldo com ele preparado, produzisse muito leite. Não, não se tratava de qualquer milho. Segundo os mitos, Nãnderu, uma entidade divina, havia destinado a eles essa variedade macia, saborosa, para ser um de seus principais, quando não o principal, alimento.
Nas páginas passadas de minha vida, um tanto já amarelas pelo tempo, revejo Bina, uma índia Guarani, cujo companheiro havia morrido em acidente de trabalho na cidade; ela ficara com três filhos e uma velha mãe para alimentar…
Eu estava grávida e ela, tuberculosa, não tinha como se empregar na cidade. Sua tosse era muito intensa e todos sabiam, naquele lugar pequeno, de sua situação. Pediu-me para trabalhar em minha casa. Sem pensar duas vezes, diante de seu drama, disse-lhe sim. Os meses se passaram e, naquele dia, lá também estava ela na varanda, a me esperar. Era doce, afetiva, uns trinta e dois anos. No impulso do afeto, esquecera-se da recomendação médica de se manter distante do bebê quando nascesse. Tomou-o para si e abraçou-o com ternura maternal. Depois se lembrou, aflita, do conselho médico. Nada me restava a fazer, diante de sua aflição. Dei-lhe um sorriso e disse: Nãnderu há de ser justo!
Naquele desfilar de pessoas, ele, o Jacaré, meu poderoso amigo, fincou-se, qual um esteio de aroeira, à minha frente. Jacaré era um índio Kadiwéu que, segundo o que se falava, era poderoso feiticeiro-curandeiro que, em dias de lua cheia, transfigurava-se em lobisomem. Era alto, tinha pouco cabelo e sua testa larga era um pouco afundada do lado esquerdo. Um tipo incomum. Tinha no seu quintal uns pés de figo que frutificavam generosamente. Queria fazer doce, declarara-me, mas nunca tinha dinheiro para o açúcar. Lá ia eu com esse produto embaixo do braço para, mais do que fazer doce, passar horas a fio, deliciosas horas, na companhia daquele homem ímpar. Jacaré – que eu chamava carinhosamente de vô – lá estava a nos abençoar, a mim e ao meu lindo bebê, com o seu intrigante olhar. Como não poderia deixar de ser, deu-me uma lição inesquecível. Ele falou quase nada, mas me disse muito.
– Minha filha, agora você ficou velha!
– Mas como, meu avô? Assim depressa!
– Sim, porque agora o tempo vai passar na vida de seu filho! E você vai poder vê-lo!
O tempo é sentido de forma culturalmente marcada.
Edir Pina de Barros é membro da Academia Brasileira de Sonetistas e da Academia Virtual de Poetas de Língua Portuguesa. Seus poemas estão disponíveis em vários livros, antologias, revistas eletrônicas e nas mídias sociais. É doutora e pós-doutora em Antropologia pela USP, professora aposentada (UFMT). Nasceu no Mato Grosso do Sul e hoje reside em Brasília.