Cidades

‘A vida, diante do vírus, teve que ser reinventada’, declara psicanalista

 

Até este domingo (28), de acordo com os dados de um levantamento global, disponibilizados pelo Google, já foram confirmadas 2.526.793 mortes ocasionadas pela Covid-19 no mundo, sendo 254.221 apenas no Brasil.

Diante do negacionismo, incertezas, desconhecimento e espera por vacinas, a saúde mental do indivíduo pode ser afetada de diversas formas. A psicanalista Daniela Santos Bezerra conversou com o Circuito Mato Grosso sobre a pandemia e seus efeitos psíquicos.

Confira:

Circuito Mato Grosso: Qual é a importância da psicologia diante do cenário de pandemia como a que estamos vivendo hoje?

Daniela Bezerra: A profissão do psicólogo é de extrema importância em situações de emergências humanitárias, calamidades públicas e situações semelhantes a um cenário de guerra como o que estamos passando. Infelizmente a psicologia sozinha não consegue, como profissão, conscientizar a população. Para tal, é preciso haver políticas públicas em forma de decreto, visando o bem estar a longo prazo. 

Circuito Mato Grosso: Os atendimentos presenciais foram suspensos por um tempo, como isso afetou os pacientes?

Daniela Bezerra: Nem todos os psicólogos suspenderam seus atendimentos presenciais, apenas nos momentos de decreto de lockdown. Os atendimentos online estão sendo de grande sucesso para nossa surpresa. Foram criadas novas tecnologias e formas de acolher o sofrimento psíquico, respaldadas pelo Conselho Federal e pelo Conselho Regional justamente pela questão emergencial do coletivo

Poucos pacientes não se adaptaram, porque o que mais conta na relação é a confiança. O meio de como essa relação se dará é apenas um veículo. Talvez a maior problemática tenha sido para os profissionais que atendem crianças, idosos, psicóticos e autistas, pois a adaptação ao instrumento virtual como meio de relação exige autonomia.

Circuito Mato Grosso: Desde o início da pandemia, que sentimentos tem sido relatados nas sessões? Quais consequências na saúde mental tem vindo mais à tona?

Daniela Bezerra: A pandemia veio como uma emergência de saúde, mas se tornou uma emergência humanitária como uma guerra. O nível de imprevisibilidade e de desconhecimento do que está por vir é muito alto. Diante do real sem nada parecido, cada um irá "sacar" seus recursos psíquicos costumeiros ou, na melhor das hipóteses, irá reinventar um novo jeito de viver.

Muitos pioraram seus sintomas pré-existentes. Agudizaram suas formas de agir. Vimos o aumento da violência doméstica e do feminicídio como resultado da convivência em confinamento. Vimos pessoas que não podiam mais estar nos Centro de Atenção Psicossociais entrarem em surto psicótico. Pessoas em confinamento ou isolamento já pela doença surtam ou se deprimem. A vivência do luto passou a ser solitária, por medidas de segurança. A fuga das pessoas por vida social e artificialidade não tem mais eficácia. Isso desestrutura o coletivo, mas cada um terá sua própria forma de se reinventar ou não, ou de sucumbir.

Circuito Mato Grosso: Como o isolamento social pode afetar a saúde mental de uma pessoa?

Daniela Bezerra: Já existem inúmeras evidências que o isolamento social reduz a capacidade de ressocialização de quem já faz tratamento em saúde mental. Justamente por essas evidências existe um movimento no país chamado “Movimento de Luta Antimanicomial”, pelo qual luta-se para que o tratamento em saúde mental prime pela liberdade e autonomia do sujeito. No caso de uma pandemia, a necessidade de isolamento é premente como único meio de sobrevivência. Então, não podemos evitar que o sofrimento psíquico pela perda de liberdade e autonomia de ir e vir apareça

Circuito Mato Grosso: No isolamento social, qual é a diferença para quem mora sozinho e para quem mora com amigos/família?

Daniela Bezerra: Isolamento social é uma coisa. Solidão é outra. Morar sozinho é outra. A questão não é propriamente estar em uma casa só, pois essa pode ser a escolha de vida de muita gente. A questão é o que se perde com a pandemia. Perde-se a liberdade, perde-se a confiança em abraçar o amigo, perde-se parentes, amigos, colegas de trabalho. Estamos perdendo muita coisa com a pandemia. Lidar com perdas é um dos maiores trabalhos psíquicos que temos que fazer normalmente na vida. Chama-se luto.

Circuito Mato Grosso: Muitos perderam amigos e familiares, como que se lida com o luto?

Daniela Bezerra: O luto é vivido de modo singular. Não existe uma regra ou uma previsão. A perda de um ente querido é sempre vivida de forma imprevisível e visceral. Outras vezes é possível que a tentativa de negar a perda incorra em um outro tipo de sofrimento posterior, como resquício daquilo que não foi bem elaborado.

Quanto aos rituais de partida do nosso mundo ocidental, nem todos sentem tanta necessidade deles. Há pessoas que não suportam velório e não fazem questão, preferem se lembrar da pessoa falecida como viva. Nem sempre o velório garante uma boa elaboração da perda. É um momento controverso de encontros inusitados que também podem trazer dissabores. Uma despedida menos ritualizada como vem acontecendo, não é necessariamente um prejuízo para todos.

Circuito Mato Grosso: Diante de tudo que vem sendo relatado, o que pode ser feito, quais são os passos para um bem-estar? Como se acalmar diante de tantas notícias e situações fora do controle?

Daniela Bezerra: não existem fórmulas prontas para se acalmar. O que existem são relações verdadeiras e relações artificiais/superficiais. Se você tem uma rede de apoio/amigos sólida e verdadeira, vocês darão um jeito de se comunicar, de continuarem trocando ideias, sonhos e experiências.

Estar isolado fisicamente não significa ignorar o outro, pelo contrário. Se o que a realidade nos impõe no momento é que não nos encontremos fisicamente, por amor/amizade, cabe não nos encontrar. Outras formas de extravasar nossa humanidade é estar na natureza, somente com as pessoas com as quais eu convivo ou ter acesso a arte (música, cinema, mostras por vídeo).

A vida, diante de um vírus, teve que ser reinventada. A reinvenção é nossa maior capacidade de lidar com o imprevisto, com o desconhecido. É claro que ter constantemente notícias dos dados desastrosos que a pandemia vem trazendo não irá trazer alegria. Ter notícia da realidade é importante sim, mas não precisamos focar somente nela.

Daniela Santos Bezerra é psicanalista membro do Laço Analítico Escola de Psicanálise, doutora em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), membro da Comissão de Saúde do Conselho Regional de Psicologia 18ª Região, psicóloga da Área Técnica de Saúde Mental da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso e membro do Coletivo Intercambiantes Núcleo Mato Grosso.

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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