Cambises II reinou a Pérsia, atual Irã entre 530 e 522 a.C., sendo o segundo governante da dinastia dos Aquemênidas. O primeiro governante foi seu pai Ciro II e Cambises herdou o maior império do mundo na época.
As instituições de Cambises se basearam na autodeterminação dos povos conquistados, o que permitiu sua dedicação a política mais do que as campanhas militares de manutenção dos seus domínios. Assim, conseguiu invadir o Egito com um grande exército formado por soldados de todos os povos do seu império, e, em 525 a.C., derrotou o faraó Psamético III na famosa Batalha de Pelúsio.
Cambises anexou a Núbia e a Cirenaica aos seus domínios persas e, apesar de ser lembrado pela generosidade com os inimigos conquistados, nunca deixou de ser lembrado também como um tirano, com relato de temperamento extremamente explosivo e inconstante, chegando a matar uma irmã grávida por espancamento.
Uma de suas passagens como administrador rigoroso e supremo da Pérsia foi objeto de várias obras de arte, tornando-se muito popular nos países baixos, sendo uma delas a de Gerard David, pintor flamenco conhecido por seu brilhante uso da cor, conhecida como o díptico “O rei Cambises e o juiz Sisamnes” ou “O julgamento de Cambises”, e que está acima retratada neste singelo artigo.
Foi Heródoto que fez inicialmente a referência narrativa, anotando Cambises descobriu que o juiz supremo Sisamnes havia recebido dinheiro para dar uma sentença corrupta. Mandou então que o juiz fosse esfolado e sua pele inteiramente retirada. Em seguida, recobriu a cadeira da justiça com essa pele, e designou Otanes, filho de Sisamnes, como novo juiz, dizendo-lhe para se lembrar sobre o que estava sentado quando distribuía justiça.
O texto original é encontrado in Herodotus, with an English translation by A. D. Godley. Cambridge. Harvard University Press. 1920, cuja tradução para compreensão e leitura em português pode ser a seguinte:
“O pai de Otanes, Sisamnes, fora um dos juízes reais, e Cambises cortou-lhe a garganta e esfolou toda sua pele porque ele fora subornado para julgar injustamente. Então cortou tiras de couro da pele que havia sido arrancada e com elas cobriu o assento sobre o qual Sisamenes se sentara para julgar. Depois de fazer isso, Cambises nomeou o filho desse esfolado e morto Sisamnes a fim de que fosse juiz em seu lugar, advertindo-o a ter em mente a natureza do trono em que estava sentado.”
Há várias pinturas sobre a temática do suborno recebido no tribunal do qual Sisamnes era o magistrado prolator das sentenças, com as referências sobre a ordem de Cambises para a sua prisão por corrupção e o esfolamento vivo como lição a todos os julgadores.
Reza a lenda que antes do julgamento, Cambises teria perguntado a Sisamnes quem ele desejava nomear como seu sucessor. E com sua ganância mesmo numa situação periclitante, Sisamnes escolheu seu filho, Otanes. O rei concordou e nomeou Otanes para substituir seu pai na cátedra judicante real, mas buscou simbolizar da forma mais terrível a necessidade de incorruptibilidade em todos julgamentos.
Assim, Cambises julgou e ordenou que fosse removida a pele do corpo de Sisamnes para ser usada estofamento do assento em que o novo juiz se sentaria no tribunal para lembrá-lo das possíveis consequências da corrupção. Com isso, Otanes seria obrigado a sempre lembrar que estava sempre sentado sobre a pele do seu pai executado por prevaricar no exercício do cargo. E isso o ajudou a garantir justiça e equidade em todas as suas audiências, deliberações e sentenças.
Na Bíblia há vários ensinamentos condenando os juízes corruptos, entre os quais está “os juízes desonestos se vendem por dinheiro e por isso são injustos nas suas sentenças” (Provérbios 17:23). E o julgamento de Cambisés denota a violência da punição dando comparação de intensidade idêntica àqueles que sofrem com a violência da injustiça, sejam os beneficiados com a decisão injusta por pagarem por ela, sejam os prejudicados com essa mesma decisão por terem seus direitos vilipendiados.
Der tudo fica o simbolismo evidente para os que tem a missão de distribuir justiça e cumprir os axiomas latinos “Fiat justitia, et pereat mundus” – “Que a justiça seja feita, ainda que o mundo pereça” – e “suum cuique tribuere” – “dar a cada um o que é seu”. Simbolismo de que não podem jamais negociar com a sua honestidade e imparcialidade no julgamento das causas sob sua condução, sob pena de, mutatis mutandi, acabarem seus dias como Sisamnes.