O Google entrou com recurso junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) na tentativa de revogar a ordem judicial que obrigou a empresa a fornecer a lista de pessoas que pesquisaram na ferramenta de buscas o nome de Marielle Franco e termos conexos pouco antes de seu assassinato em março de 2018. Em agosto, a pedido do Ministério Público do Rio, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que a multinacional disponibilize as informações às autoridades fluminenses que investigam a morte da vereadora e de seu motorista Anderson Gomes.
A empresa alega que a decisão cria risco à privacidade e viola direitos fundamentais protegidos pela Constituição. Advogados dão razão à gigante da internet.
Maristela Basso, professora de Direito Internacional e Comparado da USP, é contra a divulgação. Segundo ela, a obrigação de provar a autoria de crimes é de quem acusa e não de quem “abriu uma estrada e pavimentou para que o automóvel de todos possa transitar, inclusive aquele do criminoso”.
“Por isso é inconstitucional, ilegal e desproporcional a decisão do STJ para que o Google forneça dados dos seus usuários, de forma indiscriminada, sem individualizar os endereços de IPs. Decisão que não pode ser cumprida pelo Google, pela simples razão de que, assim agindo, vai violar o direito de privacidade dos usuários e poderá sofrer ações de responsabilidade civil em massa daqueles que se sentirem lesados”, diz Basso.
Ainda de acordo com a especialista, o STJ agiu de forma “desmesurada e desproporcional”. “Certamente, o Google, como qualquer outra empresa de tecnologia, deve colaborar com a Justiça, desde que esta tenha um suspeito e saiba o que está procurando”, complementa.
Daniel Gerber, advogado criminalista com foco em gestão de crises e compliance político e empresarial, alerta para os riscos da possível divulgação dos dados.
“Sem a menor sombra de dúvida a decisão do STJ gera um Estado panóptico que não é desejável em nenhuma espécie de democracia. Pessoas que não são investigadas ou acusadas da prática de algum ato ilícito devem ter a sua privacidade e a sua liberdade preservadas acima de quaisquer outros valores. No momento em que para fins sociais, começarmos a abdicar de tais conceitos e interferir na vida de todo e qualquer cidadão, estaremos também abdicando do conceito de democracia e estado democrático de direito”, analisa Gerber.
Já na avaliação de Blanca Albuquerque, advogada especializada em proteção de dados pessoais pelo Data Privacy Brasil e sócia do Damiani Sociedade de Advogados, a decisão do STJ, caso não seja modificada pelo STF, poderá gerar precedentes para flexibilizar o direito à privacidade dos cidadãos brasileiros, permitindo um verdadeiro “estado de surveillance” no País.
“Neste sentido, cabe lembrar que a União Europeia, após os atentados terroristas de 2005, editou a Diretiva de Retenção de Dados (2006/24), que implicava a retenção dos registros de dados pessoais dos indivíduos pelo prazo de seis meses, para eventual investigação. Entretanto, tal Diretiva foi invalidada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, gerando um precedente de que a privacidade dos indivíduos deve prevalecer sobre a vigilância indiscriminada pelo Estado”, recorda Blanca.
Para a advogada, o Brasil parece fazer o caminho inverso ao da Europa, “ao criar expectativa de precedente de quebra em massa do sigilo de dados pessoais, considerando, assim, todos seus cidadãos como potenciais criminosos”.
“É incontestável a necessidade de resolução do atentado que matou Marielle Franco e Anderson Gomes. Contudo, também se faz necessária a construção de uma proteção de dados na esfera criminal, sem constituir precedentes que possam flexibilizar garantias constitucionais como a privacidade dos cidadãos”, conclui ela.
COM A PALAVRA, O MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO
Em relação ao recurso interposto pela Google no Supremo Tribunal Federal (STF) contra decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que determinou que a empresa disponibilize dados telemáticos para o aprofundamento das investigações sobre os mandantes dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), por meio da Assessoria de Recursos Constitucionais Criminais (ARC Criminal/MPRJ) e do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO/MPRJ), informa que adotará as providencias legais para a exequibilidade das decisões nas outras instâncias.
A decisão, da 3ª seção do STJ, indeferiu três mandados de segurança impetrados pelas empresas pelo placar de 8 votos a 1. As ordens judiciais para cessão dos dados já haviam sido proferidas pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio (TJRJ), confirmando o entendimento da 4ª Vara da Comarca da Capital, sob os fundamentos de inexistência de violação aos direitos de privacidade e intimidade de número indeterminado de pessoas e ausência da violação da legislação em vigor. A quebra do sigilo de dados envolve a requisição de informações pessoais armazenadas pelo provedor de serviço de Internet e tem como requisitos aqueles traçados no marco civil da internet.
Nas três instâncias em que o processo foi analisado, o entendimento foi o de que não há qualquer violação à intimidade e privacidade das pessoas, tendo em vista que o pedido foi para obtenção de dados estáticos, com resultados anonimizados. Os pedidos feitos estão dentro das hipóteses e limites legais. Nesse sentido, a decisão do STJ foi técnica, clara e conferiu uma proteção eficiente do direito à vida e a segurança pública, da mesma forma pela qual se vem pautando o mundo (Estados Unidos Suécia, Espanha e outros países).
Espanta, assim, o inconformismo da Google, considerando as inúmeras decisões contrárias às suas postulações restritivas ao desenvolvimento da atividade investigatória e, sobretudo, a disseminação de informações desacompanhadas dos verdadeiros parâmetros legais aplicados ao exame da questão.
O MPRJ informa ainda que a Justiça do Estado do Rio de Janeiro determinou aplicação de multa à Google em caso de descumprimento da decisão, o que tem ocorrido desde agosto de 2018, com o não atendimento integral da decisão mantida pelo STJ.