O secretário de Estado de Saúde, Luiz Soares, foi preso na sexta-feira (22), por determinação judicial, ao descumprir decisão que obriga o Estado a prestar atendimento médico a um paciente do SUS. A medida pode ser considerada surpreendente pela quantidade de decisões judiciais proferidas semanalmente com o mesmo teor.
Para se ter noção, 5,2 mil ações de judicializações da saúde se acumulam hoje somente em âmbito estadual. Mas, conforme a SES (Secretaria de Saúde), já houve montante acima de 7 mil ações. Fornecimento de remédios, internações, atendimento pediátrico são alguns dos motivos pelos quais a Justiça obriga o Estado a prestar serviço de maneira imediata.
Paralelamente, mas sem muita coincidência, médicos discutiam, no mesmo dia, o futuro da saúde suplementar no país, com implicação na saúde pública, no 2º Seminário Mato-grossense sobre Judicialização da Saúde Suplementar. O número de casos de atendimentos médicos determinados pela Justiça vem crescendo a largos passos desde 2014.
Conforme dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em 2015 havia 98,8 milhões de processos em trâmite no Brasil sobre casos em que o Estado não conseguia atender às demandas, e paciente ou algum órgão de assistência e defesa da cidadania interviram judicialmente para conseguir o atendimento.
Em 2016, o número chegou a 102 milhões, e até agosto deste ano havia 79,6 milhões. No comparativo com o início da série em 2014, os processos em trâmite eram contados abaixo do milhão.
A discussão política no fundamento do assunto é o direito de acesso à saúde e capacidade do Estado de fornecer atendimento. De um lado, a Justiça brasileira se baseia em prerrogativa constitucional de que todo cidadão tem o direito à prestação de serviço da saúde, e a falha do Estado em cumprir a lei leva à interferência judicial. O juiz federal e professor da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Clênio Schulze diz que ocorre “choque de direitos fundamentais” no conflito entre Executivo e Judiciário.
Ao mesmo tempo em que a Constituição prevê o princípio isonômico à saúde, o Estado não consegue manter a estrutura enxuta para cumprir suas funções, e o aumento da demanda complica a situação.
“A judicialização tem incentivo da Justiça, que concede 90% das ações ingressadas por interpretar a Constituição de direito à saúde para todos. O cenário que temos hoje começou a ser construído há 20, 25 anos. Por outro lado, existe um limite do Estado para aplicar na saúde”.
Ele defende a criação de um comitê composto por vários setores do poder público para definir quais medidas podem ser adotadas pelo Estado para melhorar o atendimento na saúde. Uma alternativa, diz ele, para estabelecer prioridade e tornar mais arrojado o atendimento.
“Na Inglaterra existe um limite legal daquilo que o Estado pode acatar para atender pacientes por intervenção judicial, coisa que não existe no Brasil. Falta um ponto de equilíbrio entre os direitos fundamentais chocantes”.
A discussão no Brasil, no entanto, é mais complicada. A falência de várias áreas essenciais está ligada ao alto nível de corrupção de agentes públicos, e a falta de recursos aparece como resultado do volume de direito desviados de cofres públicos.
Em Mato Grosso, por exemplo, conforme a Controladoria Geral do Estado (CGE), o dinheiro desviado em durante a gestão Silval Barbosa (PMDB), cerca de R$ 1 bilhão, corresponde ao orçamento anual da Saúde.
Secretário de Saúde foi preso em Cuiabá
Luiz Soares foi preso no dia 22 de setembro, em Cuiabá, pelo descumprimento de decisão judicial que mandou o Estado fornecer medicamento à base de cannabis sativa, não fornecido pela Anvisa, a um paciente de Nova Canaã do Norte, a 696 km da capital. A prisão foi determinada pelo juiz Fernando Kendi Ishikawa, da Comarca de Nova Canaã do Norte. A prisão foi relaxada seis horas depois por decisão do TJ-MT.
Saúde totalmente gratuita é inviável, diz Dráuzio Varella
Para o médico oncologista e escritor Dráuzio Varella, palestrante do evento, o Brasil vive uma situação de infantilização do cidadão por não discutir os meandros da rede pública de saúde. Um Estado incumbido de prover atendimento e o cidadão na cobrança dos serviços são polos que geram uma situação de desequilíbrio na responsabilidade da saúde.
“A ideia de que a saúde é para todos e o Estado deve dispensar o atendimento infantiliza o cidadão. Sabemos que o atendimento é complicado no país, sem contar os vícios da própria cultura brasileira. Mas o cidadão precisa ter responsabilidade sobre sua própria saúde, a saúde é dele, ele deve se importar em se sentir bem”.
O oncologista afirma que o Estado deve se limitar a corrigir desajustes que ocorrem no sistema de fornecimento de saúde, e não cuidar especificamente do atendimento de indivíduos isoladamente.
“A saúde é um dever do cidadão, o dever do Estado é cobrir os problemas que a saúde tem por sua própria natureza. A medicina absolutamente gratuita, em que o paciente não tem nenhuma responsabilidade, vai acabar. É preciso que haja compromisso [do paciente], o que não temos hoje. A medicina gratuita é inviável”, comenta.
Dráuzio Varella afirma que o Brasil país precisa hoje de investimento no setor de atendimento preventivo, para erradicar doenças que já deviam estar sob controle há anos, mas ainda representam problemas sérios de saúde, como o diabetes e a pressão alta.
“Nós estamos envelhecendo mal. A pessoa diz que está tomando remédio, que está lhe fazendo bem, com casos espaçados de crises de diabetes ou hipertensão. Isso não é saúde”.
O oncologista afirma que o quadro de doenças primárias em nível alto de registro decorre na precariedade na rede pública de saúde com baixo financiamento e problemas de gerenciamento graves.
“Temos um sistema de saúde em que falta recurso de um lado, e, de outro, é perdulário. O Brasil precisa rever urgentemente o sistema de atendimento público, prestando serviços de prevenção, mas sem tirar a responsabilidade do paciente de cuidar da manutenção de sua saúde”.
Varella afirma que o alto nível de judicialização é reflexo da precariedade da rede pública e da falta de compromisso paciente com seu próprio corpo.
“O sistema público não tem condições de atender em todas as áreas, então, é necessário que haja uma avaliação de que caso se pode atender, mas para isso é preciso investir em prevenção, pois se não se investe contra a hipertensão agora vai se pagar mais caro quando ocorrer ataque cardíaco”.
Núcleo de defesa busca reduzir transtorno de pacientes
A Defensoria Pública criou um núcleo de intermediação de acordo entre seguradoras de saúde e assinantes para mitigar o número de ações judiciais. O grupo foi criado há dez meses e tem foco na redução de degaste de pacientes. Segundo a defensora Elianeth Nazário, coordenadora do núcleo, até o momento 18 ações deixaram de ser propostas por acordo entre as partes, um universo de 200 ações com tempo máximo de cinco em trâmite, na 5ª, 6ª e 7ª varas da Defensoria.
“É um resultado muito positivo. Conseguimos diminuir o número de casos para atendimento da saúde por meio da Justiça. E o nosso objetivo é justamente a desjudicialização, porque isso causa muita dor, desgaste para os pacientes envolvidos. Queremos diminuir ao máximo o sofrimento desnecessário do paciente”.
A defensora afirma que o tempo para resolução de casos dura em média dois dias a partir da apresentação de casos à seguradora. Um encurtamento de espera que, normalmente, pela via judicial, dura de uma semana a meses.
“Em dois dias a seguradora responde dizendo que não pode atender porque está faltando algum documento, ou que vai atender, ou que não atende de maneira nenhuma”.
A defensora afirma que a intermediação também serviu para corrigir erros cometidos por operadoras de saúde, por falta de interpretação social e judicial.
“Nós conseguimos antecipar o período de carência para gravidez, os casos de urgência e emergência não se discutem e também conseguimos comprovar com legislação que algumas cirurgias são possíveis, como a bariátrica por videolaparoscopia”.
Cuiabá cumpre 54% das decisões judiciais
A defensora pública Synara Gusmão diz que Cuiabá tem atualmente um baixo índice de ações judiciais da saúde executadas. No primeiro semestre deste ano, de 220 acatadas pela Justiça, 120 foram executadas pelo município, 54% do total.
“Se o Estado e o município pelo menos cumprissem as liminares, já teríamos um grande avanço. Temos muitas dificuldades no cumprimento, e as justificativas são inúmeras. Desde a falta de orçamento até a dificuldade de licitar [produtos determinados para compra]”.
A Defensoria Pública divulga relatórios trimestrais sobre os casos de judicialização da saúde referente a Cuiabá. O levantamento referente ao período de janeiro a março deste ano, de 148 ações ajuizadas 56,76% são de vagas em UTIs; 18,24% para fornecimento de medicamento; e 10,81% para cirurgias. Exames, procedimentos oftalmológicos e de outras naturezas somam 14,19%.
No segundo trimestre (abril-junho), de 148 ações ajuizadas, 94 foram de pedidos de vagas em UTIs, medicamentos, cirurgias, exames, tratamentos oftalmológicos e outros procedimentos, como homecare e quimioterapia, por exemplo, das quais 66 foram deferidas.
“O ideal seria não precisar judicializar, mas se judicializamos é porque o serviço é ineficiente”, diz a defensora.
Conforme a Secretaria de Saúde de Cuiabá, são hoje 423 liminares para cumprimento de medidas judiciais referentes a cirurgias, exames, medicamentos e internação em UTI. O número é parcial e diz respeito a casos julgados entre janeiro e setembro deste ano.
Ainda conforme a secretaria, o município já desembolsou, desde 2015, cerca de R$ 1,5 milhão para cumprir medidas judiciais.