Um ano após conceder entrevista ao Circuito Mato Grosso – edição 605 –, a juíza Selma Rosane, da 7ª Vara do Crime Organizado de Cuiabá, voltou a receber a reportagem. Na entrevista, a magistrada afirma que só se aposentará após concluir todos os processos que envolvem a organização criminosa liderada pelo ex-governador Silval Barbosa. Atualmente, há na sua mesa 35 volumes da ação penal derivada da primeira fase da Operação Sodoma, que deve terminar de ler nos próximos dias para sentenciar os 17 réus investigados nessa ação.
Na entrevista, a magistrada ainda fala sobre fatos polêmicos e vê a delação do ex-governador como a confirmação de que estava no caminho certo. Selma Arruda atua na magistratura há 22 anos, é considerada uma das mulheres mais poderosas de Mato Grosso, sua atuação tem repercussão nacional, anda somente escoltada, mas vislumbra uma aposentadoria sem seguranças, com direito a um bom tempo de descanso. Sobre futuro na política, resume: “Me arrependi amargamente de ter falado sobre isso. E não quero!”.
CMT: Como à senhora vê a delação de Silval Barbosa após ele ter passado quase dois anos negando os crimes dos quais era acusando?
S.A.: Eu vejo com tranquilidade, com a confirmação de que quando nós decretamos a prisão ela era realmente necessária. Que as medidas que foram tomadas na época eram necessárias. Tanto que hoje se confirma, coisa que ele confessa o que antes negava. Acho que nós estávamos realmente no caminho certo.
CMT: Nós sabemos que o ex-governador não irá cumprir, se condenado, nenhum dia da sua pena em regime fechado. Provavelmente continuará em prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. Em entrevista ao O Globo a senhora mencionou que seria uma estratégia da defesa para atenuar a pena porque viria uma sentença pesada. O que seria essa sentença pesada?
S.A.: Veja as acusações que pesam sobre ele, são inúmeras, e os crimes dos quais ele é acusado são crimes que preveem penas consistentes, então é óbvio que as sentenças que serão prolatadas, em relação ao que ele for condenado, não serão leves porque os crimes são graves. E realmente o acordo de colaboração premiada nada mais é do que um negócio. E como negócio, ele tem que ser bom para os dois lados. Então, quando viram que tinham muitas provas, que não tinham muita saída, que a condenação ia ser muito alta, resolveram procurar o Ministério Público para fazer o acordo. E, como o MP aceitou e achou que aquelas provas eram fatos relevantes, eles celebraram o acordo de colaboração. A lei diz que o acordo pode ser feito a qualquer momento, inclusive, depois da condenação.
CMT: A senhora acredita que ele pode ter se arrependido do que ele fez entregando todos esses crimes, ou não?
S.A.: Olha, eu não sei o que passa no íntimo dele para eu poder falar, mas é claro que um acordo de colaboração sempre indica uma certa boa vontade por parte de quem está negociando.
CMT: Em relação ao ressarcimento aos cofres públicos. Os delatores estão fazendo esse ressarcimento de forma correta? Atende à integralidade dos danos por eles causados? Pois receberam valores em espécie e devolvem imóveis rurais de duvidosa avaliação e capacidade de venda. Não deveria haver uma proposta que não permitisse essa forma de devolução?
S.A.: A delação ainda é um instituto muito novo no Brasil. É natural que às vezes as pessoas façam alguma coisa equivocada por conta mesmo de ser novo. No caso dos irmãos Joesley e Wesley Batista, que fizeram o acordo de colaboração para devolver milhões e milhões, acabaram ficando mais ricos do que já eram, porque eles aproveitaram que ia dar o escândalo e investiram no dólar, venderam ações, aquela coisa toda. Eu não sei, na verdade, que critérios o Ministério Público adotou para aceitar esses bens como pagamento. Mas, é certo e muito certo que valeu a pena pro Silval Barbosa, se não ele não teria aceitado.
CMT: O Silval Barbosa ofereceu cerca de R$ 46 milhões em bens como garantia de ressarcimento ao erário. No âmbito da Justiça Estadual esse valor é correspondente aos prejuízos causados?
S.A.: Para esses processos que estão aqui comigo, sim.
CMT: Como a senhora vê o envolvimento dos familiares dele, no caso a mulher, filho e irmãos, nesse esquema de corrupção?
S.A.: É muito triste a gente ver esse quadro, né? Geralmente o que se vê é uma pessoa envolvida e às vezes a família nem sabe, e se sabe faz de conta que não vê. É difícil você não saber dentro da sua família que tem alguém ganhando mais dinheiro do que deveria, mas nesse caso parece que a própria família fazia parte da organização criminosa. É uma coisa bem máfia. Faz da corrupção um negócio familiar.
CMT: Existem muitas críticas sobre o instituto da delação premiada e a possibilidade de o delator omitir informações e prejudicar a terceiros com o intuito de melhorar sua posição para conseguir os benefícios legais. O que a senhora acha que deve ser aperfeiçoado para evitar essas distorções?
S.A.: Eu vejo que a delação é muito complexa nesse sentido. Eu acho que deveria ter um sistema em que todas as colaborações ficassem concentradas para que a gente tivesse essa visibilidade. Para que o juiz daqui soubesse relativamente a um fato lá de Minas Gerais, por exemplo, e vice-versa. Porque se não o cara faz uma “salada de frutas”, joga para cima, se livra de um monte de coisa, recebe benefício e não é apenado. São melindres da colaboração, que agora só vivendo a gente acaba se dando conta do quanto ela está ainda frágil e perigosa.
CMT: Teríamos exemplos de delações em que o colaborador foi pego mentindo ou ocultando informações da Justiça?
S.A.: Tivemos um caso em que foi constatada a mentira de um colaborador. Como o instituto da delação é muito novo, a gente ficou meio sem saber o que fazer com a situação. Quando a gente constatou que ele havia mentido, o Ministério Público se perguntou: “Mas e agora? A gente sabe que ele mentiu e já quebramos o acordo agora ou esperamos chegar o final do processo para sentenciar dizendo que ele mentiu, e só, a partir dali, que pode quebrar o acordo?”. E eles resolveram aguardar. Sinceramente, eu gostaria de ver o desfecho da recente história dos irmãos Batista [Joesley e Wesley] no Supremo Tribunal Federal, para que tenhamos um parâmetro para seguir. Aqui nós somos mais cautelosos, resolvemos deixar o processo correr até o final e na sentença declarar se foi mentira ou não para depois tomar providência quanto ao mentiroso. Agora, no exemplo que estou dando, dos irmãos da JBS, está totalmente ao contrário. As prisões saíram já sem ter certeza do que aconteceu e tudo está muito mais rápido do que no nosso caso. É um dos problemas que eu vejo na colaboração.
CMT: A senhora certa vez disse que poderia disputar um cargo público para melhorar o combate à corrupção. Existe mesmo essa possibilidade? Se existe, para que cargos públicos?
S.A.: Olha, eu já me arrependi muito de ter falado isso, amargamente. Porque, ao mesmo tempo em que algumas pessoas me abordam me dando votos de confiança, me “filiando” em partidos, outras maliciosamente tentam dizer que as decisões tomadas aqui no juízo têm cunho político, e elas não têm cunho político nenhum. As ações vêm para mim, não sou eu que escolho, que oferece denúncia, junta provas. O juiz é um receptor das informações. Então, isso já me deu muitos dissabores, essa bendita história de falar que um dia eu poderia disputar um cargo público. Hoje eu tenho isso esclarecido. Quando me perguntaram isso, eu disse que não pretendia disputar, mas insistiram “e se fosse” e então respondi “se fosse, eu gostaria de algum cargo no Legislativo para poder trabalhar o meu conhecimento penal e processual, para fazer melhorias”. Já pensou se eu pudesse melhorar essa questão da delação? Se pudesse melhorar essa questão que estamos vivendo hoje? Se a gente tivesse uma pessoa com conhecimento técnico e boa vontade para fazer essas melhoras, que avanço a gente poderia dar? Então foi nesse sentido que eu falei que eu gostaria de alguma coisa no Legislativo. Mas, como eu disse, já me arrependi muito de ter dito isso. E não quero.
CMT: Doutora, esse reforço do juiz Marcos Faleiros para ajudar a desafogar a magistrada desses processos na 7ª Vara Contra o Crime Organizado em relação ao grande volume de trabalho, também teria relação com a sua aposentadoria?
S.A.: Não, isso foi por conta mesmo da complexidade e do número de processos. Eu vivia pedindo para o Tribunal de Justiça que me desse mais assessores e foi concedido; mais tarde, porém, me tiraram. Então o Tribunal de Justiça resolveu colocar mais um juiz [o Marcos Faleiros].
CMT: Sua aposentadoria já poderia ter saído desde o mês de agosto. Então, com esses processos todos para sentenciar, a senhora tem previsão de quando vai se aposentar?
S.A.: Não, agora eu já estou na hora extra [risos]. Eu pretendo sim me aposentar, mas não sei ainda quando, porque esses processos são muito grandes e eles acabaram demorando para vir para a sentença. Tem dois dias que a Sodoma I está aqui. Eu estou numa perspectiva de terminar, sentenciar esses processos, não porque eles são de repercussão, mas porque fui eu quem instruí. Todo o enredo está na minha cabeça. Então eu quero sentenciar esses casos e em seguida me aposentar. O meu plano era final deste ano, já com esse tanto de processos que eu preciso sentenciar eu já nem sei mais se consigo. Tomara que sim.
CMT: Mas há boatos de que o pedido da aposentadoria da senhora já estaria tramitando…
S.A.: Não, não. Eu não entrei com o pedido ainda. Eu já me informei lá no Tribunal de Justiça e eles me disseram que o processo tramita bem rápido, em torno de trinta dias. Então, eu não vou entrar agora, porque vai que tramita e eu não dou conta de fazer as coisas aqui ainda. Vou deixar para quando eu souber mesmo o momento que dê para sair.
CMT: Ainda sobre a aposentadoria da senhora: o que pretende fazer quando isso acontecer? Quais os planos para aproveitá-la?
S.A.: [risos]. Olha, eu penso que eu vou ficar parada um tempo. Quero ficar sem fazer nada mesmo, fazer só o que me der na telha. Vou viajar um pouco, dar uma curtida, uma relaxada. Mas depois eu acho que vou começar a querer fazer alguma coisa útil. É provável que eu vá advogar. Pegar alguma coisinha que distraia, mas que não me prenda e assim levar o resto da vida.
CMT: A senhora já disse que anda com escolta. Gostaríamos de saber se quando de fato se aposentar permanecerá com os seguranças ou não?
S.A.: Se até lá eu estiver tranquila, não tiver nenhuma ameaça ou indício de que eu vá correr riscos, eu prefiro ficar sem. Mas eu não gostaria de, depois de aposentada, continuar com escolta, não.
CMT: Então a senhora ainda recebe ameaças?
S.A.: É… A gente estando aqui na ativa é sempre um risco. Tanto com relação às organizações criminosas de colarinho branco, mas também com relação ao Comando Vermelho, PCC e outras organizações. Como todos esses processos de organizações criminosas param aqui, o juiz dessa vara acaba sendo muito visado.
CMT: Como a senhora vê os pedidos para que fosse afastada das operações? Chegou a acreditar que um dia pudesse ser afastada? Se a senhora fosse afastada, qual seria o sentimento?
S.A.: Isso é uma estratégia de defesa. Se um dia eu for afastada por um pedido de alguma dessas pessoas, eu vou levar na maior naturalidade possível, e vou te dizer mais: não tenho amor nenhum por processo porque ele não é meu filho. Quer dar para outro, vai. É um trabalho a menos pra mim. Eu não tenho nenhum apego com essas coisas.
CMT: Sobre os advogados e réus tentarem atacá-la visando desestabilizá-la durante as audiências, como a senhora lida com isso?
S.A.: Eu tenho um “macete” de sempre fazer uma oração antes da audiência e acho que isso me acalma bastante. Mas é também o tempo de estrada, né? Eu tenho vinte e poucos anos de carreira, sempre na área criminal, e gosto do que eu faço. É a mesma coisa que se você fosse um motorista e a estrada estiver esburacada, mas como você gosta de dirigir, você dirige igual.
CMT: Este ano a senhora decidiu abandonar as redes sociais e chegou a desativar seu perfil do Facebook. Mas passado um tempo a senhora retornou. Gostaríamos que falasse sobre essas decisões, sobre esse momento em que precisou sair das redes sociais e depois viu que deveria ficar por ali para continuar, como a senhora mesma disse, lutando contra a corrupção.
S.A.: Antes eu mantinha minha página como qualquer pessoa e colocava qualquer coisa que eu gostasse. E às vezes me criticavam, porque as pessoas não costumam enxergar os juízes como seres humanos, eles acham que juiz é um bicho e então não pode ter certas atitudes. Essas mesmas pessoas que me criticavam diziam que eu tinha pretensão política, que eu usava o Facebook como meio de aparecer para a sociedade. Foi esse o motivo pelo qual eu saí. Agora eu retornei, mas foi de outra forma. Não estou mais postando essas coisas que postava antes, posto no máximo uma coisa por dia, e só mensagens voltadas à questão da legislatura e combate à corrupção. Estou fazendo o mais impessoal possível em respeito às pessoas que me pediram para voltar e por achar que tenho o direito. Não é o fato de ser juíza que me impede de ter um Facebook.